01/09/2014
Ano 18 - Número 905

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



REGISTRO FIEL DE UMA AMIZADE

 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

À primeira vista, a amizade entre Carlos Drummond de Andrade e Fernando Jorge parece algo estranha. Dois temperamentos tão diferentes tornariam difícil uma aproximação entre o poeta tímido e lacônico, avesso às grandes efusões, e o jornalista de combate, sempre disposto ao debate e à polêmica. Mas, ainda que provocando surpresa, a verdade é que vigorou entre eles uma amizade íntima que perdurou durante longos anos. Ambos tinham em comum o amor pelas letras e eram homens de grande erudição, conhecedores da literatura e do meio cultural. E então, no curioso livro “Drummond e o elefante Geraldão” (Editora Novo Século – S. Paulo – 2012), Fernando Jorge fez o registro saudoso e sentimental dessa longa amizade num texto delicioso, escrito com a costumeira elegância de um estilista.

Tantos e tão interessantes são os relatos contidos no livro que não é fácil escolher algumas amostras para o eventual leitor. Começando pelo título, o autor explica que se deve ao desejo, nunca realizado, de Drummond escrever um romance fantástico contendo a história de um elefante de apetite insaciável, que devorava todos os dias um boi, uma baleia ou um hipopótamo. Em consequência, cresce tanto que fica do tamanho do morro Itacolomi, impedindo-o de namorar a elefanta Claudete. E o mais grave: quando fazia suas necessidades, emporcalhava tudo! E talvez por isso, o infeliz elefante Geraldão jamais apareceu como personagem de romance, embora muito divertisse o poeta ao imaginar suas aventuras. Fernando Jorge nunca esqueceu a gargalhada de Drummond, atitude das mais raras em homem tão discreto, ao narrar as peripécias do elefante. “Ele me transmitiu a impressão, ao narrar a história do tal elefante, de ter voltado à sua infância na longínqua Itabira de 1910” (p. 12).

Episódio chocante, acontecido com o poeta, relata o encontro de rua com um lunático desbocado e agressivo que já havia extorquido dinheiro de Jorge Medauar, ameaçando-o com uma faca. Fernando Jorge e Jorge Medauar conversavam quando deles se aproximou o tal indivíduo, momento em que surge Drummond e se junta ao grupo. Ao saber que se tratava do poeta, o sujeito a ele se dirige: “Cara – rosnou o desvairado – tu é muito feio, tu parece um aborto, uma assombração. Como tu é feio, cara!” Os outros ficaram horrorizados mas ele prosseguiu, insistindo em acentuar a feiúra do poeta, e depois afirmou: “Ouça, não fique com inveja, eu, como poeta, sou mil vezes superior a você, porque escrevi o poema “Linda prostituta sifilítica, tu és a minha paixão!” Estarrecido diante da brutalidade o grupo se desfez. Fernando e Medauar, à noite, visitaram o poeta em solidariedade. E a história termina assim: “Decorridos três meses, após esbofetear um padre negro, em quem enxergou a materialização do Belzebu, o monstro foi internado num manicômio, onde, segundo me informaram, vivia a declamar o seu poema “Linda prostituta sifilítica, tu és a minha paixão” (pp. 18/21).
No decorrer de longas palestras, nos seus seguidos encontros, Fernando Jorge vai anotando o que acontece, prevendo, sem dúvida, a importância do material coletado. Registra as opiniões do poeta sobre autores e livros, suas recordações da infância, desabafos, confissões, episódios marcantes. Chega a pedir ao jornalista que o critique de forma negativa através da imprensa. “Só recebo elogios, como poeta, - explicou ele – e isto é muito perigoso. Elogios intermináveis transformam o elogiado, se está vivo, num medalhão, numa figura acadêmica de museu histórico” (p. 34). Fernando Jorge atendeu ao pedido do amigo, ele se divertiu muito com a cacetada recebida e a crítica foi um sucesso.

Num dos capítulos é evocada a curiosa história do “poema da pedra”, um dos mais conhecidos de Drummond, e que provocou intensa polêmica. Para encerrar, transcrevo-o aqui: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra. – Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./ Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra.” (p. 106).

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                         Contato com o Autor comentado: Rua Professor Arthur Torres Filho, 177
                         Alto da Boa Vista – 04742-030 – SÃO PAULO – SP.


(01 de setembro, 2014)
CooJornal nº 905



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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