10/05/2014
Ano 18 - Número 891

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio


TIO TINO
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Foi o único amigo chegado de meu pai que conheci bem. Nas férias passadas na cidade eu frequentava muito a sua casa, uma chácara dos arrabaldes onde abundavam laranjas e caquis. Deitados no velho pomar ou sentados ao redor do fogão de lenha, eu dava corda ao casal para que contasse causos de assombração em que tanto Tio Tino como Nhá Cecília eram especialistas.

Eles gostavam de recordar a figura de meu pai, acentuando sempre a minha semelhança física e de gestos com ele. Mais de uma vez surpreendi lágrimas nos olhos de Tio Tino e sua voz embargada ao relembrar o amigo pelo qual tinha adoração.

Relatava-me os trabalhos de horta e pomar que ambos realizavam no imenso terrenão em que meu pai edificou a sua célebre casa de pedra; os móveis que fabricaram na oficina montada nos fundos; os grandes bailes de carnaval do “Repentino” em que os dois se esbaldavam e até o auxílio prestado por ele a papai em algumas cirurgias, coisa que me parecia meio duvidosa, devida talvez a um momentâneo “excesso de recordação...”

Seja como for, a verdade é que meu pai tinha por ele grande amizade e gostava de sua companhia, embora às vezes perdesse a paciência com as “besteiras” que falava e exclamasse sem a menor cerimônia:

- Cala a boca, Juventino! Deixa de dizer asneiras!

Mas foi depois que me fixei na cidade, como profissional, que amiudei os contatos com ele. Era já um homem idoso, miudinho e calvo, de voz suave e quase sempre bem humorado. Os calos crônicos dos pés obrigaram-no a adotar sapatos de lona, de forma que caminhava com grande silêncio. Não me lembro de tê-lo visto com outro calçado nos anos em que lá vivi.

Esse pisar macio e quieto, aliado ao costume de entrar sem bater, criou situações às vezes embaraçosas. Entrar sem bater, na região dos Campos Gerais, só se permite aos íntimos, às pessoas de “fiança da casa.” Por isso é que, tanto em minha casa como em meu escritório, ele sempre ia entrando, pela frente e pelos fundos, e a qualquer hora.

Contavam que numa visita que fez a uma vizinha, doente e acamada, surpreendeu-a sentada na “comadre.” Como ela não pudesse mudar de posição, pois usava o “aparelho” por debaixo das cobertas, outro recurso não teve senão permanecer ali por longo tempo, enquanto durou a permanência de Tio Tino, cujas visitas estavam longe de ser breves.

Nessa fase da existência ele gostava de recordar os bons tempos de outrora. Tinha a memória viva para os fatos distantes. Com os olhinhos brilhando por baixo da pala do “boné de orelhas” que usava para se proteger daqueles frios terríveis e sugando o inseparável palheiro de fumo amarelinho, lembrava com prazer evidente as andanças da juventude, em especial as viagens com tropas de mulas para o Estado de São Paulo.

- O Nabor Mesquita – contava ele – mandou um próprio lá em casa com um recado: “Juventino, você se aprepare pra viajar pra Itapetininga...”

Lá vinham os detalhes dessa longa viagem em lombo de burro, por meses e meses, sempre contada e repetida. E que eu me obrigava a ouvir, fingindo o maior interesse. Numa altura da narrativa eu perguntava:

- Faz muito tempo isso, Tio Tino?

Ele, esfregando o polegar no indicador, respondia sem pestanejar:

- Ih!... Você nem havia!

Nabor Mesquita, a quem me referi, é um personagem que sempre mexeu com minha imaginação. Só o conheci das referências inúmeras a seu respeito, dando a impressão de que estava em toda parte. Assume aos meus olhos feição meio indefinida, misto de aventureiro e revolucionário, tropeiro e comerciante. Parece que morava no Rio Grande e o não tê-lo conhecido me deixou ligeira frustração. Seria, talvez, excelente modelo de personagem.

Mas voltemos ao Tio Tino. Não esqueço do dia em que ele, muito assustado, embarafustou pelo meu escritório e foi logo indagando:

- É verdade que vão acabar com o nosso dinheiro?

Anunciava-se uma reforma monetária e a imprensa fazia grande barulho sobre o assunto, apavorando os que, como ele, tinham em algum dinheiro a juros a única fonte de sobrevivência. Embora eu também dispusesse de poucas informações, pois a tal reforma, além de ser a primeira que eu via, me apanhou de surpresa, procurei tranquilizá-lo, mostrando a lógica e a calma que um “doutor advogado” tem que manter em qualquer situação.

O episódio, filtrado pelos anos, põe a nu o abandono perene do nosso homem do campo. Tio Tino, como inúmeros outros, fora rico enquanto pudera trabalhar, negociar, viajar. Com a idade, impedido de lutar, só lhe restou vender os imóveis que tinha, um a um, tornando-se um “jurista”, na expressão loca, isto é, colocando o seu dinheiro em mãos duvidosas até que a inflação forçasse novas vendas e assim sucessivamente, até o exaurimento final. Passados tantos anos, nada ou pouco se alterou. A cada visita sou informado de casos idênticos.

Quando deixei a cidade, para iniciar nova vida, alguns anos depois, Tio Tino e Nhá Cecília ainda viviam. A chácara, porém, tinha um aspecto de triste decadência. Nos últimos meses eu os fotografei muito e minhas visitas foram frequentes. O casal permanece na minha lembrança, sentado ao sol em cadeiras de palhinha, ele com o boné inseparável, ela meio curva em virtude de uma fratura que a mataria em pouco tempo.

Quando a notícia chegou, Juventino já estava morto e sepultado. Senti, senti muito, principalmente por não tê-lo visto e dele me despedido à beira do túmulo, como era merecedor.

Com ele partia o único elo, além de mamãe, que me ligava a meu pai, que não conheci e que tanta falta me fez.

Tio Tino foi sepultado como um desconhecido. No entanto, seu nome se liga à própria história da cidade que ele tanto amou e para a qual colaborou à sua maneira. Espero apenas que não tenham cometido o despautério de sepultá-lo com aqueles horríveis tênis.

Embora seja de crer que ele foi entrando no Céu sem bater, como era de seu costume, não haveria motivo algum para que não anunciasse a sua chegada com fortes tacadas no chão. Estaria no seu direito.
 

(10 de maio/2014)
CooJornal nº 891



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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