25/03/2014
Ano 18 - Número 885

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


FARQUHAR E LOBATO
Uma parceria improvável
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

A edição brasileira da monumental biografia de Percival Farquhar (1864/1953) traz um capítulo extra que é uma curiosidade e bem merece um comentário (*). Nesse breve capítulo, que é um autêntico ensaio, é abordada a posição de ambos em relação aos problemas do país naquela época e a opinião que cada um fazia do outro, ainda que nunca tivessem se encontrado em pessoa. Para Monteiro Lobato, patriota e nacionalista, Farquhar não passava de um perigoso aventureiro internacional que pregava o entreguismo e encarnava o próprio imperialismo. O escritor temia a ação do americano, em especial sua capacidade de abrir portas de maneira não ortodoxa, através de polpudas propinas que, segundo seu biógrafo, eram repassadas por seus advogados e engenheiros bem relacionados, nunca por ele próprio, que seria quacre convicto. Farquhar, por outro lado, encarava as campanhas de Lobato pelo ferro e pelo petróleo com ceticismo e ironia, vendo-as como uma espécie de combate a moinhos de vento por um homem que vivia no mundo da lua e que, por sinal, é o título de um dos livros de Lobato. O tempo mostraria que Lobato estava certo, tanto com a descoberta do primeiro poço de petróleo na Bahia, por coincidência num lugar denominado Lobato, e pelo inegável sucesso da usina de Volta Redonda.

Como se sabe, Lobato costumava escrever ao ditador, no auge de seu poder, tratando-o simplesmente por “Dr. Getúlio” e logo dizendo sem censura tudo que pensava. E assim foi por bastante tempo, até que uma dessas cartas o colocou atrás das grades. É provável que “Dr. Getúlio” considerasse que o escritor havia passado do limite tolerável e remeteu uma de suas missivas ao famigerado Tribunal de Segurança Nacional, dando margem ao processo que o levou à cadeia. Esse foi, sem dúvida, um dos gestos mais infelizes de Vargas, manchando de maneira permanente sua biografia. Quanto a Farquhuar, no entanto, e bem antes disso, Lobato escreveu a Getúlio alertando-o sobre as intenções nebulosas do americano.

Tomando conhecimento de que Farquhar tinha audiência marcada com o presidente, Lobato se apressa em escrever-lhe para colocar as coisas em pratos limpos. “Lobato advertia Vargas – escreve o autor – de que Farquhar era o “sinistro” imperialista representante da Bethlehem e da U. S. Steel, que vinha com a finalidade de destruir o plano Lobato-Bulcão, destinado a resolver todos os problemas do Brasil” (p. 465). É que Lobato vinha empenhando hercúleos esforços na implantação de uma pequena usina siderúrgica, em São Paulo, em sociedade com o industrial Fortunato Bulcão e o engenheiro de minas Antônio Augusto de Barros Penteado. O escritor e seus sócios advogavam a adoção do chamado Processo Smith, criado pelo Prof. William H. Smith, de Detroit, que Lobato conhecera na época em que atuou como adido comercial nos Estados Unidos. Eles o consideravam ideal para produzir ferro-gusa no Brasil, uma vez que não tínhamos carvão de elevada qualidade e o novo processo permitiria o uso de babaçu e café imprestável para o consumo como combustível. Tratava-se de um processo revolucionário que não exigia altas temperaturas.

Lobato estranhava que Farquhar viajasse ao Rio de avião, numa pressa inusitada, quando o normal seria optar pelo conforto e a segurança de um grande navio. Por que agia assim esse homem já idoso? “Para ganhar tempo – respondia Lobato. – Para organizar a resistência e impedir que seu governo repita a obstrução feita por Bernardes a Itabira. Por trás de Farquhar estão todos os grupos estrangeiros interessados em manter o Brasil como colônia em termos de metalurgia.” (pp. 465/466).

Concluiu a histórica missiva apelando a Vargas, “como guardião dos verdadeiros interesses do Brasil”, para se precaver contra o americano, enviando documentos, relatórios, artigos e material variado para bem esclarecer a magna questão.

Vargas, no entanto, não parece ter dado maior atenção à advertência. Fosse porque já tinha posição firmada sobre o assunto ou porque a carta se desviasse nos escaninhos burocráticos, não deu resposta. A questão metalúrgica no país ainda rolaria por vários anos, em marchas e contramarchas, até que lhe fosse imprimido um rumo. Nem Farquhar e nem Lobato foram vitoriosos. Aquele sofreu vários e penosos reveses; Lobato viu o decantado Processo Smith ser considerado ineficaz e, por isso, abandonado. Mas nessa altura ele já estava apaixonado por outra causa – a do petróleo.

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(*) “Farquhar, o último titã”, de Charles H. Gauld, tradução de
Eliana Nogueira do Vale, S. Paulo, Editora da Cultura,
2006, 520 págs.
 

(25 de março/2014)
CooJornal nº 885



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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