25/02/2014
Ano 17 - Número 881

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Enéas Athanázio



O JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO, AINDA
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Entre as muitas figuras que povoam Juazeiro do Norte e o Cariri Cearense abordadas por Raimundo Araújo no livro “Fragmentos do Passado”, já comentado nesta coluna, se destaca o padre Antônio Vieira. Não se trata do homônimo português e grande orador sacro, mas daquele que nasceu em Várzea Alegre e se projetou como escritor de vasta obra e como realizador, implantando importantes movimentos de assistência social e batalhando sem temor contra a famigerada indústria da seca. A par de suas atividades como sacerdote, dedicou-se a construir e reformar igrejas e capelas, além de edificar um ginásio, vencendo toda sorte de obstáculos. Sua atividade permanente junto ao povão começou a incomodar os senhoreantes de plantão. E foi então cassado pelo regime autoritário, “Fui cassado politicamente. Mas não fui castrado moralmente” - declarou na época.

Cronista, ensaísta e jornalista, havia publicado inúmeros livros até o ano do ensaio aqui comentado, creio que 23, o mesmo número dos filhos de seu avô. Abordou nessas obras os mais variados temas, dentre os quais os ligados ao sertão, pelo qual nutre “um amor sincero, desinteressado e autêntico.” Mas tratou também de questões relacionadas à fé, à família, à igreja, à questão social, à história, ao amor, ao relacionamento entre as pessoas, aos problemas filosóficos, jurídicos, políticos e econômicos e por aí além. Revelando sempre seguro domínio do tema abordado e com nítida preocupação pelos pequenos e injustiçados. Um sacerdote imbuído dos sólidos princípios da doutrina social da Igreja.

Avulta em sua obra o famoso livro “O Jumento, Nosso Irmão”. Tornou-se conhecido em todo o país, projetando seu autor de forma admirável, comentado com intensidade na imprensa e na televisão. Segundo Araújo, foi considerado pela BBC de Londres o mais completo livro até hoje publicado em todo o mundo a respeito do simpático animal que tantos serviços tem prestado à humanidade.

Graças ao poeta João Bandeira de Caldas, sou possuidor de um exemplar, publicado em março de 1964, mês e ano fatídicos de nossa história, pela Livraria Freitas Bastos. Em 300 páginas de texto denso e elegante, o autor estuda o jumento na história, na religião, na economia, no folclore e na literatura, sempre baseado em longa e paciente pesquisa. Dedica a obra ao seu amigo Burro e aos seus amigos que não são burros. Estuda a presença do jumento no mundo e no Brasil e a importância que teve como animal de carga e de tração, transportando pessoas e produtos pelas primitivas picadas e até mesmo puxando bondes nos centros urbanos. Capítulo dos mais curiosos é aquele em que estudou o fabulário envolvendo o animal e a pequena antologia correspondente. É incrível a quantidade de fábulas em que o jumento aparece, assim como as anedotas de que é personagem. Recorda a dívida impagável do Brasil para com o jumento, elemento importante em sua expansão econômica e social desde os tempos coloniais. Nas secas nordestinas é sempre um herói, transportando água em longas jornadas, permitindo a sobrevivência de numerosas pessoas. Além de muitos outros aspectos, dedica todo um capítulo ao estudo da personalidade do jumento, imaginando até mesmo sua “carteira de identidade”. É um livro dos mais curiosos e criativos.

Outra figura lembrada por Raimundo Araújo é Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião. Como registrou a história, Lampião visitou Juazeiro do Norte em 6 de março de 1926 a convite do Dr. Floro Bartolomeu da Costa, então deputado federal e braço direito do Padre Cícero. O objetivo do convite foi integrar o cangaceiro e seu bando na luta contra a Coluna Prestes cuja presença na região tirava o sono das chamadas classes conservadoras. Lampião foi armado e apetrechado para tanto, mas, segundo consta, nunca enfrentou a Coluna e nem se preocupou em fazê-lo. Recebeu na ocasião a patente de capitão, engendrada na hora e sem qualquer validade. Não obstante, usou o título de capitão pelo restante de sua vida. Nessa visita Lampião foi filmado pelo libanês Benjamim Abraão e entrevistado pelos jornalistas Otacílio Macedo e Lauro Cabral. A patente foi assinada por Pedro Albuquerque Uchoa, inspetor do Ministério da Agricultura. Em livros sobre o cangaço, li que o cangaceiro ficou furioso ao saber que a patente não tinha validade. É possível que tenha cogitado invadir Juazeiro para se vingar da “traição”, mas não se atreveu a tanto. O fato, porém, é que ele, depois de ser recebido com rapapés e salamaleques, saiu armado até os dentes, com armas novas e modernas, e muito bem municiado. E jamais pensou em combater coluna alguma; era valente mas não tolo a ponto de afrontar um grupo numeroso e com treinamento militar. Lampião morreu na Grota do Angico, em Sergipe, local que visitei, vítima de traição.

O livro de Raimundo Araújo me permitiu rememorar tantos momentos agradáveis vividos na cidade do Padre Cícero, o refúgio dos náufragos da vida, como ele dizia. Sonho em lá voltar, inclusive para saborear um bom caruru regado a cajuína São Geraldo naquele restaurante do Crato que nunca fecha porque as portas só têm o vão.
 


(25
de fevereiro/2014)
CooJornal nº 881



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


Direitos Reservados