10/02/2014
Ano 17 - Número 879

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio



O JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Três vezes estive em Juazeiro do Norte, a cidade do Padre Cícero Romão Batista, o santo do Nordeste. Conheci toda a região. Andei pelo Crato, tão lembrado no célebre poema “Brasil”, de Ronald de Carvalho; fui a Caririaçu, terra do jurista Raimundo de Oliveira Borges e de Aldenor Benevides, o Filósofo do Piripau; visitei Assaré, chão do inigualável Patativa; palmilhei pela Rua do Vídéo, em Barbalha, na companhia do médico e historiador Napoleão Tavares Neves, e não esqueci de Santana do Cariri, onde está o museu paleontológico. Também fui a Caldas, estância hidromineral, onde me banhei na Cascata de Lampião e nas piscinas naturais. Cruzei a célebre Chapada do Araripe, da qual brotam mais de trezentas fontes permanentes que fazem do Cariri Cearense um oásis verdejante em meio ao semi-deserto. Em Juazeiro, ainda que suando em bicas, subi ao horto em que está a estátua em homenagem ao Padre Cícero, uma das maiores do mundo, e percorri a cidade em todos seus quadrantes, conhecendo os pontos de interesse. Em consequência, por lá deixei muitos amigos que não se esquecem de mim, tanto que sempre me mandam alguns mimos.

Entre as recentes ofertas que de lá vieram, destaco o livro “Fragmentos do Passado”, de autoria de Raimundo Araújo. Formado em Letras, professor, autor de 18 livros e de intensa colaboração publicada na imprensa, neste volume ele reuniu contos, crônicas, resenhas, biografias e muitos outros textos variados, produzidos em diversas fases e registrando inúmeros eventos culturais de que participou, além de fotos de família e de seus ícones. O conjunto é harmônico e permite uma visão bastante ampla da vida daquela simpática cidade, o antigo arraial do Tabuleiro Grande, povoado pobre e inerte que o carisma e a fé de um religioso pertinaz transformaram no principal centro turístico e comercial da região. Para ela acorrem multidões de todos os cantos do país para reverenciar o Padre Cícero e os milagres que lá se verificaram despertaram a curiosidade de incontáveis pesquisadores, dentre os quais Ralph Della Cava com seu famoso livro “Milagre em Joaseiro.”

Dentre as figuras retratadas no volume, na impossibilidade de me referir a todas, permito-me destacar duas. A primeira a merecer um comentário é a beata Maria de Araújo a quem o autor dedicou um ensaio. Figura central dos chamados milagres do Cariri, essa mulher humilde e analfabeta dedicou a vida à religião. Quando recebia a comunhão ministrada pelo Padre Cícero, a hóstia se transformava em sangue, fato que teria sido presenciado por muitas pessoas e atestado por profissionais da saúde. Começou, então, o seu calvário. Com a proibição da hierarquia católica de divulgar o episódio, considerado por muitos uma farsa, a pobre mulher foi atacada de maneira impiedosa até o fim de seus dias e não mereceu o respeito humano nem mesmo após a morte. “Abriram o túmulo dela e verificaram que os restos mortais não se encontravam mais na sepultura onde fora sepultada, pois violaram-na abruptamente (...) No sepulcro encontraram apenas restos de panos e madeiras do caixão” – escreveu o autor (p. 68). A partir daí desenrolou-se a longa e penosa questão religiosa do Juazeiro que culminaria com a excomunhão do próprio Padre Cícero, num dos capítulos mais deploráveis de nossa história. Maria de Araújo, no entanto, jamais admitiu a prática de qualquer tipo de fraude e se manteve impávida na sua versão sobrenatural dos fatos. Sua memória é hoje venerada como a de uma santa.

Outra figura admirável, vítima de quanta injustiça se possa imaginar, foi José Lourenço Gomes da Silva, o famoso beato Zé Lourenço. Pacifista e dócil por natureza, foi um líder nato, notável condutor de homens e hábil organizador comunitário. Depois de muitas andanças e penosos anos de trabalho, estabeleceu-se com seu povo no lugar Caldeirão de Santa Cruz, em terras do Padre Cícero. Ali implantou um reduto próspero e feliz, com lavouras de boa produção, ordem e paz. Tudo se fazia em benefício comum, cada um dispondo do que necessitava. Tornou-se o refúgio dos infelizes e dos miseráveis, a tábua de salvação dos náufragos da vida – como dizia o Padre Cícero. Mas essa organização e seu modelo vitorioso incomodavam. Tratava-se de um quisto indesejável e perigoso – gritavam alguns, como Catão exigia a destruição de Cartago. E assim Caldeirão teve a mesma sorte, foi invadido e destruído a ferro e fogo, seus moradores escorraçados para engrossar a miséria das periferias. Mas o beato, reabilitado, repousa hoje no mesmo cemitério do Padre Cícero, ao lado do Patriarca.

Eis uma pequena amostra do livro, revelador de uma região rica em história, cultura, lendas, literatura, folclore, música e vida palpitante. É pena que seja tão pouco conhecida aqui nas bandas sulinas.
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Contatos com o autor comentado: Rua São José, 5 5 8
63010-450 – JUAZEIRO DO NORTE - CE



(10
de fevereiro/2014)
CooJornal nº 879



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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