08/11/2013
Ano 17 - Número 865

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Enéas Athanázio



 OS CONFINS

 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Depois de longos anos, mergulhei de cabeça na releitura do romance “Vila dos Confins”, livro de estreia do escritor mineiro Mário Palmério (1916/1996), cuja primeira edição me acompanha desde que foi publicada (Livraria José Olympio Editora – Rio – 1956). O livro, na época, teve intensa repercussão, selando o ingresso de um talentoso escritor no mundo literário, e foi considerado pela crítica uma obra-prima, expressão que reluto em aplicar, tão desgastada está pelo reiterado e imerecido uso. Desde então, foi colocado no patamar de Guimarães Rosa como as duas maiores expressões do regionalismo mineiro com destaque nacional. E, de fato, o livro é envolvente, cativando o leitor de forma definitiva, e de leitura agradável. Impressiona o conhecimento do autor sobre os Gerais mineiros, desde a geografia, a paisagem, a vegetação, os pássaros, os peixes, as estórias e as lendas, os costumes do povo e, acima de tudo, a riquíssima linguagem regional. São incontáveis os personagens, muitos deles com nomes curiosos, que se movimentam ao longo do romance, os mais importantes com perfis e personalidades nítidos e coerentes. O volume contém belíssimas ilustrações de Percy Lau.

O enredo romanesco, na verdade, é dos mais simples, embora enriquecido sempre pela quantidade imensa de elementos com que o autor o engorda. Tudo acontece às vésperas da primeira eleição para prefeito e vereadores no recém-criado município de Vila dos Confins, há pouco desmembrado de Santa Rita, ambos situados em região de caatinga, nas proximidades do rio Urucanã. A oposição, sob o comando do deputado federal Paulo Santos se opõe aos velhos “coronéis”, enfrentando toda sorte de chicanas, ardis e truques costumeiros que me recordaram eleições que acompanhei em lugares onde morei. Afrontando a ausência de recursos, a péssima qualidade das estradas, a deficiência de cabos eleitorais, tocaias feitas por jagunços, pesadas ameaças e até mesmo a prepotência policial, pequeno grupo de homens e mulheres decididos se lança numa luta desesperada, da qual só poderia sair esmagado pela previsível derrota. Procurando equilibrar a desigualdade de forças, lançam mãos de artimanhas que chamam a atenção das autoridades e atraem forças federais, mas a sorte está lançada e tudo é inútil.

Nesse meio conturbado e violento se movem os mais curiosos personagens. Desde logo se impõe a figura do mascate Xixi Piriá, benquisto por todos, conhecedor das estradas, caminhos e veredas, percorrendo sem cansaço, sob o sol inclemente, toda a região, vendendo de casa em casa, com a malinha nas costas. Nela vão encomendas, remédios, badulaques, presentes, tudo em pacotinhos caprichados, recendendo a sabão de cheiro, e até mesmo bilhetes de negócios e namoros, recados e mensagens ainda frescos de beijos e abraços escondidos. Naquele “mundão largado de não acabar mais”, que é o sertão dos Confins, “não há mesmo quem não o conheça e não lhe queira muitíssimo bem.” Com sol ou chuva, “o mascate não podia afrouxar a marcha: todo o sertão tinha encontro marcado com ele.” Terninho de brim bem passado, calças vincadas a ferro, gravata com bolinhas, curvado ao peso da mala, lá vai ele, Xixi Piriá. “Chapéu tombado de banda, a botina de elástico chiando na areia rangente. Insofrido, insofrido...” Onde chega está em casa, nos povoados, nas fazendas, nos ranchos, nos armazéns, nas bodegas, vai se ajeitando num canto, modesto e humilde, miúdo, pequeno, sempre pronto a servir e ajudar. Mas o destino gosta de surpresas e lhe reserva um papel decisivo, imprevisto e inesperado. Naquele sertão de homens duros e valentes, machões e violentos, a ele, miúdo e modesto, tão pequeno, que mal enchia meia porta da bodega, coube o destino do herói improvisado. Quando o Filipão, jagunço medonho, forte e estúpido, facínora de muitas tocaias, atirador exímio e temido, se põe a desfeitear a todos no bar do Fiico, tenta obrigar Xixi Piriá a beber à força. O mascate, humilde e medroso, pede e implora, mas o Filipão ignora e o ofende ainda mais. Palavras pesadas, injúrias, insultos. Tudo o mascate suporta, trêmulo, até que o jagunço ofende com palavras rudes a moça Maia da Penha, paixão secreta do mascate. Então, tomado de um impulso e uma força descomunais, o pequenino reage, lança-se sobre o grandalhão e o fura a certeiros golpes de punhal. Do mesmo punhal de prata recebido como presente do deputado. Em seguida, ainda abismado, cruza em silêncio a porta iluminada pela lamparina de querosene. À medida que anda, vai crescendo com sua sombra aumentando, agigantando-se como jamais se imaginou. “Xixi Piriá. Lá vai ele... E grande, e corpulento – beleza mesmo de caboclão!” A luz baça lhe bate nas costas através da porta escancarada, recorta-lhe a figura que se espichou na sombra e que se estendeu até se esvanecer no imenso da noite.

E os moradores da Vila de uma só rua – que começa na igreja e acaba no cemitério, “tal e qual a vidinha do povo que mora lá” – não se cansam de comentar, assombrados, embasbacados e admirados, a coragem inaudita do pequeno homem que num só momento cresceu e se agigantou. Jorge Turco, o dono da venda, Jãojão, Toteiro, Nenzinho, Tataco, Daíco, Veveco, Ovo Choco, Zé Mamão, tantos e tantos, não podiam esconder o assombro. Talvez até mesmo o João Fanhoso, galo caduco, naquela noite viesse a cantar ainda mais fora de hora em saudação ao herói.


(
08 de novembro/2013)
CooJornal nº 865



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


Direitos Reservados