23/08/2013
Ano 16 - Número 854

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



UM ROR DE TRAGÉDIAS
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Em artigo anterior fiz comentários a respeito do livro “O homem que venceu Auschwitz”, de autoria de Denis Avey, com a colaboração do jornalista Rob Broomby (Editora Nova Fronteira – Rio – 2011). Esse soldado britânico lutou nos desertos africanos durante a II Guerra Mundial e, depois de mil peripécias, foi feito prisioneiro de guerra pelos alemães e internado num anexo do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Durante o período em que lá esteve foi submetido a trabalhos forçados, em regime escravo, padecendo toda sorte de privações. Nos barracões ao lado ficavam milhares de “listrados”, ou seja, os judeus destinados às câmaras de gás e às valas comuns com os quais os prisioneiros de guerra não poderiam ter contatos. Mas sempre chegavam murmúrios sobre o que acontecia com eles e Denis Avey arquitetou então o mais absurdo dos planos para verificar in loco a realidade dos pavilhões judaicos e assim testemunhar, no caso improvável de que viesse a sobreviver, tudo que havia visto.

Os judeus aprisionados – relata ele – eram indivíduos semimortos, sombras esqueléticas e cinzentas, com os cabelos raspados e vestindo uniformes listrados e mal ajambrados que mais pareciam pijamas gastos pelo uso. Perambulavam cabisbaixos, mal suportando o próprio peso, famintos e com os olhos no fundo. Viviam aterrorizados sob a constante vigilância dos “kapos”, prisioneiros recrutados que “tinham poder de vida e morte sobre os demais e os usavam como bem entendessem. Capatazes violentos, carregando porretes ou cordas pesadas...” (p. 115). Coisas mínimas constituíam motivo para surras e espancamentos sem piedade. Era um ror de tragédias.

Mesmo em tais circunstâncias e enfrentando toda sorte de perigos, Denis Avey decide entrar nos pavilhões dos listrados. Com essa atitude abria mão da condição de prisioneiro de guerra, já péssima, para se tornar um prisioneiro comum, equiparado aos judeus, ou seja, condenado à morte inevitável e em pouco tempo. Foi então, quando trabalhava num prédio de alvenaria, que conheceu o prisioneiro judeu Hans, cujo sobrenome jamais viria a saber. Aproveitando breves momentos, com ele se comunicou, murmurando pelo canto da boca, e passando-lhe um cigarro. Tornaram-se amigos, se assim é possível dizer. E nos fugidios encontros seguintes combinaram a troca de lugares. Assim, afrontando todos os riscos, fixaram os detalhes, trocaram as roupas e cada um se dirigiu ao local do outro. Avey vestiu o uniforme listrado e Hans envergou a surrada farda do exército inglês. Só dois colegas de Avey sabiam do plano e trataram de facilitar as coisas para Hans, evitando que despertasse suspeitas. Quanto a Avey, esforçou-se para assumir a postura dos judeus e ingressou no inferno, lá permanecendo por alguns dias. A troca foi repetida tempos depois e só não aconteceu pela terceira vez em virtude da severa vigilância dos guardas.

Passando pelo portão de entrada, notou a inscrição “O trabalho liberta”, e ingressou no recinto diabólico. Cheiro nauseabundo, espaço insuficiente, o alimento se resumia a uma sopa asquerosa. À noite, os pesadelos de muitos assombravam os que tentavam dormir. E quando caíam de doença ou exaustão eram lançados sobre caminhões e conduzidos às câmaras de gás. Ficou evidente que a ordem era matar pelo excesso de trabalho, extorquindo do prisioneiro até a última gota pelo esforço de guerra. E depois, a vala comum. “Compreendi que não se tratava de um campo de trabalho comum. Eles estavam sendo deliberadamente levados à morte pelo excesso de trabalho” (p. 116). Enfim, convivendo com aqueles infelizes, ele testemunhou em pessoa e sentiu na própria carne as maiores atrocidades. Foi agredido no rosto, ferimento que lhe causou, mais tarde, a perda de um olho. E, de quebra, conheceu algumas das mais odiosas figuras da repressão. Pelo menos uma delas foi fuzilada pelos aliados. A experiência tresloucada permitiu o surgimento deste livro, um documento único das entranhas do pior lado do nazismo.

Mas as tropas soviéticas se aproximavam. Tornou-se premente destruir os indícios do que ali acontecera. Tem início a longa e tenebrosa marcha pela Europa das longas fileiras de prisioneiros. E Avey, então, consegue fugir e escapar para a vida. Encerrando seu livro, faz uma severa advertência: “As pessoas acham que isso não vai acontecer novamente e, em especial, que isso não vai acontecer aqui. Não acredite nisso: não é preciso muita coisa!” (p. 261).



(23 de agosto/2013)
CooJornal nº 854



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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