16/08/2013
Ano 16 - Número 853

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Enéas Athanázio



T
ÁTICAS DE SOBREVIVÊNCIA
 

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Embora as raras resenhas que vi o rotulem como um livro sobre a guerra, “O homem que venceu Auschwitz”, de Denis Avey, com a colaboração do jornalista Rob Broomby (Editora Nova Fronteira – Rio – 2011) é muito mais que isso. Ele contém, na verdade, as memórias de um soldado britânico que lutou na II Guerra Mundial, documenta em minúcias um período negro da história contemporânea e revela as reflexões de um homem traumatizado e sofrido ao extremo, filtradas por longos anos de espera até que ele se julgasse em condições psicológicas de revolver os fatos arquivados na memória e passá-los para o papel. Pelo que se conclui da leitura, depois de sobreviver por autêntico milagre das situações mais absurdas, o autor ficou tão descontrolado mentalmente que nem se reconhecia a si próprio e só com extraordinário esforço se recuperou por completo, ainda que isso demorasse várias décadas. Só então, com mais de 90 anos de idade, contando com a decidida colaboração de Rob, decidiu escrever suas experiências num livro espantoso pelas atrocidades que relata nos mínimos detalhes.

Na condição de soldado, alistado em 1940, Denis Avey foi enviado para o Egito e lá combateu em batalhas do deserto nas mais desumanas condições. Acossados pelo marechal Rommel, depois de terem enfrentado os italianos, foram vencidos em toda a linha. Presenciou cenas que o marcariam para sempre, vendo os colegas estraçalhados à sua frente e abandonados na areia sem ao menos uma cova rasa. Mas tratou de endurecer o coração sob pena de perecer e praticou incríveis gestos que pareciam beirar à loucura porque a ordem era uma só – sobreviver. Entre suas atitudes mais surpreendentes relembrou o tiro de misericórdia que desferiu num oficial desventrado e sem possibilidade de recuperação. Em outra ocasião, numa situação extrema, teve que escolher entre matar ou morrer e eliminou um soldado inimigo a golpes de faca. “Tenho carregado comigo o sentimento daquela noite pelas últimas sete décadas” – diz ele (p. 52). Ainda que embrutecido pela guerra, seu espírito sofre com a penosa lembrança. Em compensação, teve a sorte de salvar da morte alguns companheiros e, por sua vez, também foi ferido.

Até que ele e seus companheiros foram feitos prisioneiros de guerra e embarcados num navio com destino à Europa. E então o navio é torpedeado e ele, em circunstâncias inacreditáveis, acaba se salvando para ser outra vez aprisionado. Depois de intermináveis e penosas andanças, com fome, sede e frio, é recolhido a um anexo do campo de extermínio de Auschwitz, junto com numerosos outros, onde é submetido a trabalho escravo em benefício do esforço de guerra nazista e de uma das tantas empresas que, de mãos dadas com o nazismo, tiravam proveito da escravização dos soldados inimigos. No campo vizinho ficavam os “listrados”, ou seja, os judeus destinados ao extermínio na chamada solução final.

É recolhido ao campo de Buna-Monovitz, na parte exterior de Auschwitz, nome germanizado da cidade polonesa de Oswiecim. Tinha início o longo calvário. Trabalho árduo, disciplina férrea, alojamentos miseráveis e infectos, ausência de alimentação e de bebidas, dormindo em beliches apertados e padecendo um frio terrível. O cheiro nauseabundo de latrinas improvisadas, corpos suarentos e dejetos empestava o ambiente. E a vida de nada valia, poderia ser interrompida pela violência por qualquer pretexto ou mesmo sem pretexto algum, dependendo do humor dos “kapos” e dos soldados. A sobrevivência dependia de tática, aprimorando-a ao extremo, agindo com inteligência e cautela em todas as situações. Coisas mínimas adquiriam valor incomum e os cigarros se transformaram em valiosas moedas de troca. Um só deles poderia valer um pedaço de pão seco e este, por sua vez, talvez representasse mais um dia de vida.

Nos barracões vizinhos se moviam as sombras dos judeus – os “listrados.” “Seus rostos eram cinzentos, e suas cabeças, toscamente raspadas e semicobertas por pequenos bonés. Assemelhavam-se a sombras indistintas, movediças e sem formas... Reconheci naquelas pobres assombrações traços humanos como os meus, embora grande parte de sua humanidade lhes tivesse sido arrancada” (p. 115). E eles, de um momento para o outro, desapareciam. Seu destino – murmuravam – eram as câmaras de gás e a vala comum. Mas seria isso possível? – era a indagação que martelava na sua cabeça em busca de uma verificação direta e pessoal. Partindo daí, brota o inacreditável plano de entrar voluntariamente naquele inferno para verificar in loco o que acontecia.

Mas essa é matéria para a próxima crônica.


(16 de agosto/2013)
CooJornal nº 853



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


Direitos Reservados