19/04/2013
Ano 16 - Número 836

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



MENDIGOS CANINOS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Um leitor atento andou procurando os cachorros que aparecem nos meus contos e crônicas. Encontrou com facilidade os três mais notórios: Joli, Jasper e Pulga, cada qual no seu ambiente, mas todos sem raça definida (SRD) ou, como dizemos, guapecas, além de alguns anônimos.

Meu amigo Trajano Pereira da Silva, incansável leitor, recordou em mensagem recente os numerosos cachorros que vivem nas páginas dos livros e se tornaram figuras destacadas na literatura. Quem não se recorda, - indaga ele, - de Baleia, a cadelinha que acompanha os retirantes no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, ou de Quincas Borba, do romance do mesmo nome, de Machado de Assis, que se tornou amigo íntimo de Rubião, seu dono, e que o escritor descreveu com tanta ternura? Ou, ainda, do Cunegundes, que Monteiro Lobato colocou no conto “Um suplício moderno” e numa das cartas de “A Barca de Gleyre”? Mais interessante é que todos esses guapecas ganharam o mundo, uma vez que os livros onde aparecem foram traduzidos para diversas línguas. Ficaram eternizados.

Dentre todos, no entanto, o único que existiu na realidade foi Cunegundes. Tratava-se de um cão de rua que perambulava pelo centro de São Paulo, no início do século passado, e que merecia as simpatias do chamado Cenáculo, o grupo a que pertencia Monteiro Lobato. Magruço, com os fios das costelas à mostra, sarnento e sujo, tinha vagos traços de policial alemão e vivia da caridade alheia, sempre arredio e temeroso dos maus tratos. Era um mendigo canino. Dali Lobato o pinçou e lhe deu destaque nos seus escritos, embora não fosse o único. É que o pobre Cunegundes mereceu páginas carinhosas de outros escritores.

Cícero Marques, escritor que se relacionava com o pessoal do Cenáculo, embora a ele não pertencesse, escreveu admirável crônica sobre o Cunegundes, começando por descrevê-lo no aspecto físico. Ele retrata o cachorro “roendo uns ossos de coxa de galinha, quando não mastigando, voraz, uns restos de croquetes que mãos piedosas atiravam ao chão, para matar-lhe a fome canina. E estas refeições fazia-as, amedrontado, rabo encolhido entre as pernas, com um olho no padre e outro na missa, isto é, voltado para as amplas portas abertas a-fim-de, ao primeiro contato com o pé do garçom Felício, ou a ponteira da bengala de um cliente, pôr-se ao fresco, sem maiores contratempos.” Creio que isso acontecia no Café Guarany, onde o grupo tinha mesa cativa.

“Outras vezes – continua o cronista – a um insignificante estalar de dedos, ou a carícia duvidosa de um guarda-chuva passando-lhe no dorso esquálido, exagerava a alegria, e se permitia a uns tênues ganidos para demonstrar o seu contentamento.” O mísero animal retribuía o menor carinho. Entretanto, pondera o autor, ninguém jamais se lembrou de levá-lo para casa, dando-lhe um teto no fundo do quintal, onde ficasse ao abrigo do sol causticante, das chuvaradas gélidas e do frio dos invernos. E, mais importante ainda, sem padecer os rigores da fome crônica. É verdade que, sendo Cunegundes um libertário andarilho, talvez recusasse tais mordomias, preferindo as incertezas da rua à segurança sem liberdade.

Mas vai que um dia – arremata o cronista – Cungeundes, distraído, namorava uma Luluzinha que o fitava por trás de um portão gradeado. Aproxima-se dele, com um laço na mão, o homem da carrocinha, implacável perseguidor de cães sem dono. O pobre animal sente no pescoço a dureza da corda, esperneia, grita, uiva, resiste, mas tudo em vão. É jogado na carrocinha e conduzido ao local tenebroso em que será transformado em sabão. Por ironia do destino, seu corpo sempre imundo virou sabão destinado a “limpar a roupa suja de muita gente.” E conclui o cronista: “Afinal de contas, Cunegundes, tu tens na tua raça cachorros que são bons, outros que são cachorros pra cachorro, tal qual no gênero humano onde existem indivíduos que têm ações cachorras para os seus semelhantes.”

O fim trágico de Cunegundes foi reconstituído de maneira fictícia numa série de fotos de Armando Barreto e que mereceu o Prêmio Nikon Internacional. Na sequência fotográfica, um garoto consternado e em lágrimas observa impotente a prisão do animal e imagina seu doloroso fim.


(19 de abril/2013)
CooJornal nº 836



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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