29/03/2013
Ano 16 - Número 833

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Enéas Athanázio



JOHN DOS PASSOS E O FALAR DO POVO (2)

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

A leitura de “O Grande Capital”, de autoria do escritor americano John dos Passos (1896/1970), publicado pela Saraiva/Benvirá (S. Paulo – 2012) é um desafio de 700 páginas, mas compensador. Trata-se do terceiro volume da trilogia “EUA”, composta também dos romances “Paralelo 42”, o mais conhecido no Brasil, e “1919.” Neste aqui comentado, porém, o Autor colocou o máximo de seu esforço, observação e criatividade, compondo um vasto painel da formação do grande capital e da plutocracia americana. Como afirmou um crítico, ele escutou o falar do povo e produziu um dos mais ambiciosos projetos da literatura americana do Século XX com expressão universal. Integrante da chamada geração perdida, assim batizada por Gertrude Stein, o Autor também mereceu críticas negativas, acusado de impatriótico e subversivo, como sempre acontece quando alguém escreve aquilo que não deve ser mostrado. Mas o romance tem sólidas bases na realidade histórica e reflete com perfeição o ambiente da época.

No correr do romance predomina a vida vertiginosa em Nova York, com a corrida desenfreada atrás do dinheiro em meio ao ambiente de festas, bebidas, mulheres, colunas sociais, adultérios e mexericos. O consumo do álcool, inclusive no meio doméstico, é constante e encarado com naturalidade, e vários personagens sucumbem ao alcoolismo. Nem a rígida lei seca consegue reverter o quadro. Enquanto isso o jogo pesado das ações e da bolsa enriquece a muitos e empobrece a outros tantos com a mesma rapidez. As celebridades são cultuadas como exemplos do sucesso pessoal e financeiro, entre elas Isadora Duncan, cuja tragédia final chocou o país, Rodolfo Valentino e outros atores do cinema. Em paralelo, os latinos lutam com desespero por um espaço, como o cubano Tony Garrido, muito popular no Brasil de então, que não conseguiu passar de extra e figurante, morrendo assassinado. E assim se consolida o “american way of life”, copiado pelo mundo ocidental como uma espécie de modelo, levando junto a própria língua inglesa. Ao lado, abafada pela autocensura da imprensa, se desenvolve a luta surda pela melhoria das condições do trabalho operário, reprimida com extremo rigor, em especial quando eclodiam as greves.
As indústrias automobilística e aeronáutica se desenvolvem com segurança como demonstração de pujança econômica. Os Fords Bigodes deixam as linhas de montagens com crescente rapidez e eficiência, obedientes aos princípios do “taylorismo”, e invadem as ruas, enquanto os aviões, ainda um tanto precários, começam a cortar os céus. (Como todo americano, o Autor atribui a invenção do avião aos irmãos Wright, e não a Santos Dumont). Os magnatas da alta finança, de todas as áreas, são objeto de geral admiração. O dono da grande cadeia de jornais, dos grandes laboratórios farmacêuticos, das indústrias poderosas, das agências de publicidade, os destacados profissionais liberais - todos se tornam objeto da simpatia popular e muitas vezes acabam nos postos do Congresso Nacional. Não poderiam faltar, como se imagina, os vultosos negócios com os governos, as concessões, as licitações, as empreitadas, as obras públicas. E aí entravam o tráfico de influência, os lobies, os apadrinhamentos e até as propinas. As negociações

sob-reptícias se tornavam tão sutis que um lobista se perguntava: “se era ele que estava usando o senador ou se era o senador que o estava usando” (p. 453). Não obstante, separam-se com caloroso aperto de mãos, cada qual levando sua dúvida. O culto ao deus mercado, a quem cabe regular a vida do povo, do país e do mundo, é geral e pacífico. Embora surjam no horizonte, ainda um tanto difusas, as manobras subterrâneas para violar essas leis que seriam imutáveis e soberanas: trustes, cartéis, conglomerados e outras maquinações do gênero se fortalecem com o objetivo pouco recomendável de obter lucros cada vez maiores, esmagando a concorrência. E o “crack” da bolsa, em 1929, deu um tranco que arruinou milhões mas foi superado e esquecido. Segundo o Autor, aquele país “viveu um momento de sucesso material e, diriam alguns, de declínio moral.”
É fácil imaginar a reação provocada pelo romance. O Autor foi aclamado como exímio artista das letras e, por outro lado, como inimigo da pátria, subornado pelo ouro de Moscou, subversivo e “comuna.” Não foi e não era nada disso. Apenas descreveu com inaudita coragem o que viu e ouviu, registrando com serenidade o próprio falar do povo.

Descendente de portugueses, John dos Passos nasceu em Chicago. Foi jornalista, pintor, poeta, tradutor e romancista. Realizou grandes coberturas de caráter internacional e esteve várias vezes no Brasil. É considerado um dos mais importantes escritores do Século XX.



(29 de março/2013)
CooJornal nº 833



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


Direitos Reservados