22/03/2013
Ano 16 - Número 832

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



JOHN DOS PASSOS E O FALAR DO POVO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Foi a escritora norte-americana Gertrude Stein quem batizou de geração perdida o grupo de escritores dos Estados Unidos que se auto-exilou em Paris na década de 1930. Contrariando as previsões negativas, no entanto, a geração perdida produziu alguns dos maiores escritores da literatura universal, dentre eles Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e John dos Passos. Este último teve, e ainda tem, muitos leitores no Brasil, onde esteve várias vezes, e sempre revelou simpatia pelo nosso país. John dos Passos (1896/1970) foi um romancista inovador, adotando novo estilo e novas técnicas romancísticas, além de ter produzido uma obra ambiciosa em que se destaca a trilogia “USA”, que compreende os romances “Paralelo 42”, “1919” e “O Grande Capital.” Embora o primeiro, ao que parece, seja o mais lido entre nós, o último é o mais amplo e que maior esforço exigiu de seu autor na elaboração. Trata-se de um espesso romance com 700 páginas, na edição brasileira, publicado pela Benvirá/Saraiva (S. Paulo – 2012), em caprichada tradução de Marcos Santarrita. Segundo a crítica, o Autor ouviu a voz do povo americano e a gravou em páginas modelares, registrando com precisão o próprio sentimento popular.

“O Grande Capital” é um romance impressionante. Nele o Autor procurou romancear a formação e a consolidação da riqueza americana e o surgimento da plutocracia econômica naquele país. Revela a repressão implacável contra qualquer reivindicação de natureza social ou trabalhista, talvez a mais severa de todo o mundo, mesmo quando os trabalhadores padeciam da maior miséria. As greves, jamais toleradas, por justas que fossem, eram reprimidas à bala, semelhando verdadeiras guerras. Os grevistas, alijados do mercado de trabalho, se viam forçados a engrossar a marginalidade, o chamado lumpemproletariado. Por outro lado, o Ford Bigode proliferava, enquanto Henry Ford, seu criador, encetava campanhas antissemitas, atribuindo aos judeus todas as desgraças do mundo. E o taylorismo, adotado nas linhas de montagem, tudo cronometrava, chegando ao extremo absurdo de fixar até o tempo concedido para que o trabalhador frequentasse o sanitário (três minutos). Por ironia do destino – segundo ele – Frederick Winslow Taylor, mais conhecido como Speedy Taylor, o inventor da eficiência na indústria e que dobrara a produção, faleceu na madrugada de seu 59º. aniversário. “Quando a enfermeira entrou no quarto para olhá-lo às quatro e meia, ele estava morto com o relógio na mão” (p. 37). Estaria, talvez, cronometrando o tempo que a morte levaria para chegar.

Mas o poder do dinheiro como expressão avassaladora do capitalismo tinha suas exigências. O sucesso individual deveria ser comprovado de forma pública, como afirmação pessoal e de ascensão social, através da exibição do luxo, dos jantares regados a champanhe, dos carrões, das vestimentas caras. Modelo, afinal, copiado pelo mundo todo e que vigora até hoje. Como exemplo, o Autor biografa a bailarina Isadora Duncan, oriunda da classe pobre e que se tornou uma diva internacional, adorada em todo o mundo, inclusive no Brasil (Gilberto Amado descreve num de seus livros a visita dela ao nosso país). Mas ela pagou seu preço à modernidade e à vida vertiginosa: morreu estrangulada quando a cauda de sua echarpe se enrolou na roda do carro esportivo em que se encontrava. Outra exigência se constituía na necessidade de ter heróis, fossem eles reais ou fabricados. Assim, um dos personagens, tenente do exército que retornara da I Guerra Mundial e durante a qual pouco havia lutado, sentia-se constrangido quando lhe exigiam a postura do herói. Tentavam torná-lo herói, ainda que à força, mas o plano não funcionou, tendo ele se entregado à boemia desbragada e ao alcoolismo, morrendo num estúpido acidente. Muito rico.

A galeria de personagens do romance é imensa. Eles se cruzam e entrecruzam nas mais diversas atividades e situações. O Autor exibe ao longo dele profundo conhecimento de seu país e sua gente. Aplaudido pelo povo como expressão da realidade nacional e pela crítica como um dos mais ambiciosos projetos realizados por um escritor americano, os homens do dinheiro torceram os narizes a não tardaram a inscrever o Autor no vasto rol dos “comunas”, ainda que não o fosse. Na visão deles, foi uma má ação revelar as intimidades do país. Melhor seria escondê-las sob o manto da hipocrisia.


(22 de março/2013)
CooJornal nº 832



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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