07/12/2012
Ano 16 - Número 817

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio



O POVO DO ABISMO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Foi o escritor norte-americano Jack London quem escreveu o livro “O povo do abismo”, cujo título tomo de empréstimo para este artigo. Para isso ele mergulhou de cabeça nas camadas mais pobres e desamparadas da sociedade, convivendo com desempregados, mendigos, andarilhos, doentes mentais, aventureiros e todos os tipos de desventurados que vivem à margem da sociedade. Seu relato, inspirado nos próprios fatos, teve repercussão incomum e influenciou muitos leitores com as tocantes revelações de um mundo quase desconhecido e onde vegetam milhões de deserdados da sorte. Outros escritores também ficaram impressionados com o submundo ali revelado, sendo possível perceber sua influência em certos contos de Ernest Hemingway, e, acima de tudo, em George Orwell (1903/1950), cujo livro “O caminho para Wigam Píer” (Cia. das Letras – S. Paulo – 2010) desvenda um panorama semelhante, ainda que na Inglaterra. Embora seja das obras menos conhecidas do escritor inglês, nascido na Índia, a edição brasileira tem sido bastante lida e comentada.

O caminho percorrido pelo autor foi, na verdade, longo ao extremo, uma vez que teve início na longínqua Birmânia, hoje Mianmar, e terminou em Wigan Píer, ao norte da Inglaterra. Quando servia na Força Policial Imperial Indiana, em Rangum, ainda muito jovem, o futuro escritor começou a sentir de forma aguda que integrava um odioso sistema imperialista e opressor daqueles povos orientais. Desde então teve início o gradativo processo de afastamento daquele sistema, do qual procurou se distanciar tanto quanto possível, demitindo-se do cargo que ocupava e retornando à Inglaterra. Seguiram-se anos de muita pobreza, beirando à miséria, exercendo atividades mal remuneradas e sem atrativos. Viveu em Paris e Londres experiências que inspiraram um de seus grandes livros – “Na pior em Paris e Londres.” Foi então que um editor o incumbiu de registrar em livro a vida dos mineiros do norte da Inglaterra e verificar in loco o desemprego e a miséria que campeavam naquela região. Estava ali a grande oportunidade de escrever de forma autêntica, sem romancear, sobre um tema tantas vezes abordado, ainda que de forma ficcional, como fizeram A. J. Cronin e tantos outros. Para tanto, o passo inicial seria se libertar dos preconceitos próprios da classe média a que pertencia e tentar viver como verdadeiro mineiro de carvão no seu próprio habitat, atitude que nada tem de fácil. Com esse propósito, viajou às cidades mineiras e ali passou a viver a dura realidade de seus habitantes, observando tudo que acontecia no dia-a-dia daqueles homens enegrecidos pela fuligem e que gastavam seus dias perfurando o solo em busca do ouro negro que movia o mundo da época.

O relato tem início na descrição fria e impessoal da vivência numa miserável pensão, suja e infecta, onde os hóspedes mal conseguiam mitigar a fome. Os detalhes são impressionantes e deixam a sensação de que a miséria européia não encontrava paralelo. “Não era só a sujeira, os cheiros fétidos e a comida nauseabunda, mas a sensação de decadência, de uma estagnação sem sentido, de ter descido a um lugar subterrâneo onde as pessoas se arrastam em círculos” – escreveu (p. 37). É, pois, com intenso alívio que dali se afasta num trem também imundo e que percorre trilhos negros de fuligem, onde por sinal tudo é negro, inclusive a própria neve. E surgem as cidades carvoeiras, cercadas por montanhas de escória de carvão onde os desempregados catam os mínimos pedaços de hulha que escaparam da seleção. São aglomerações humanas feias, os casebres margeiam ruelas estreitas e curvas, o chão recoberto por lama escura e visguenta. Verdadeiras favelas onde tudo é escurecido pelo carvão e as chaminés das fábricas vizinhas lançam ao espaço densas nuvens de fumaça. Nos barracos precários vivem amontoadas numerosas pessoas, disputando espaços tão exíguos que algumas têm que dormir encolhidas ou em turnos. Por ali se movem os mineiros vestidos em andrajos, com o corpo todo entranhado de carvão, e que muitas vezes nem sequer têm onde se lavar além de alguma bacia. Mesmo assim, dando graças por estarem empregados, quando incontáveis outros, desempregados, são forçados a subsistir com um minguado auxílio-desemprego. O trabalho no interior das minhas é descrito em detalhe, revelando um mundo sofrido em que homens de coragem incomum labutam nas mais duras condições. Em alguns locais a carência de habitações é tal que famílias inteiras vivem em carroções recobertos com tolda de lona, semelhantes aos dos ciganos, e que jamais saem do lugar.

Dividido em duas partes, o livro é documentado com impressionantes fotos originais. A primeira parte é uma minuciosa reportagem sobre a região carvoeira, as cidades, a vida dos mineiros e suas famílias e a penúria da grande massa de desempregados. Na segunda parte o autor se debruça sobre a realidade mundial e faz interessantes reflexões a respeito dos caminhos e descaminhos da humanidade. Sincero nas convicções e corajoso nas posições assumidas, não teme dizer o que pensa e não poupa nem mesmo seus patrícios. Para ele, os ingleses constituem o povo mais preguiçoso da Europa (p. 134). Com esse livro – dizem os críticos – Orwell contribuiu para a melhoria das condições de trabalho nas minas de carvão.



(07 de dezembro/2012)
CooJornal nº 817



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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