09/11/2012
Ano 16 - Número 812

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio



CANGACEIROS

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

O livro “Lampião contra o Mata Sete”, de Archimedes Marques, comentado nesta coluna, muito além da polêmica sobre o pretenso homossexualismo de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, contém outros elementos informativos interessantes e que fornecem uma visão do cotidiano dos cangaceiros em seus acampamentos nômades nas áridas caatingas nordestinas. Como se trata de algo raro e curioso, bem merece um ligeiro comentário.

Na chamada segunda fase do cangaço, as mulheres começaram a ser admitidas nos bandos, o que antes fôra proibido. Entre as que então ingressaram estavam Maria Bonita, a mulher de Lampião, por ele “roubada” de um sapateiro e que se tornou a rainha do cangaço. Também ingresou Dadá, mulher do célebre Corisco, o Diabo Loiro, mulher muito linda e de temperamento forte que assumiu a direção do bando do marido, entrevado dos braços em virtude de tiros recebidos, após a morte de Lampião, até a eliminação de Corisco em 1940. Outra que se notabilizou foi Neném, mulher de Luís Pedro, lugar-tenente de Lampião. Não se pode esquecer ainda de Durvinha, tida por muitos como a mais linda de todas as cangaceiras. Ela e o marido, com a morte de Lampião, na Grota do Angico, em Sergipe, em 1938, afundaram no sertão mineiro, mudaram de nomes e viveram anônimos até o ano passado, quando Moreno, o marido, ficou doente e acabou falecendo em Belo Horizonte, ocasião em que veio à tona o passado do casal, até então desconhecido mesmo pelos filhos.

Segundo os autores, as mulheres eram tratadas como princesas, desfrutando de todos os privilégios e considerações. Com o ingresso delas os cangaceiros teriam se humanizado, deixaram de praticar certas barbaridades e se tornaram menos violentos. Em compensação, qualquer traição era punida com a morte, sem piedade, como teria acontecido com a mulher de Zé Baiano, facínora cujo prazer maior estava em ferrar mulheres no rosto com uma marca incandescente, tal como se faz com o gado.

As mortes de Lampião, em 1938, e Corisco, em 1940, marcaram o fim do cangaço, fenômeno típico do Brasil, sem similar no mundo ou na história. Lampião teve uma “carreira” que durou vinte anos, lutando, driblando e vencendo as volantes policiais de sete Estados nordestinos, o que lhe valeu a fama de gênio da estratégia guerrilheira. Para tão prolongada atividade, assaltando, roubando, sequestrando, estuprando, torturando e matando, contou sempre com a cobertura de pessoas influentes, fazendeiros, políticos e funcionários corruptos, os chamados “coiteiros.” Eles lhe vendiam armas, munições e mantimentos, informavam sobre a localização das volantes policiais e permitiam que o bando se refugiasse em suas fazendas. Entre seus mais influentes coiteiros estavam Eronildes de Carvalho, capitão-médico e governador de Sergipe. além de seu pai, que o protegiam de todas as formas. Tanto é verdade que apesar das violências cometidas naquele Estado, um só e único processo foi instaurado contra o rei do cangaço. Nesse processo, que se tornou folclórico, o Oficial de Justiça exarou a seguinte certidão: “Deixei de intimar o denunciado de folhas, Virgulino Ferreira, conhecido por Lampião, por não ter, graças a Deus, visitado esta cidade aquela indesejável fera. O referido é verdade, do que dou fé.” (a) Januário Bispo de Menezes, Oficial de Justiça (pág. 383). Ninguém, na verdade, teria coragem de intimar Lampião, na remota hipótese de que dele se aproximasse.

Vivendo nas matas, em região de pouca água e muita poeira, os cangaceiros raros banhos tomavam. Para compensar, lavavam-se de perfumes, o que lhes conferia um odor típico, conhecido como “cheiro de cangaceiro.” Tal cheiro, uma vez sentido, já bastava para apavorar os sertanejos e identificava de pronto os temidos homens do cangaço.

O cangaço acabou com a morte de Lampião e Corisco. Mas os coiteiros existem até hoje, cada vez em maior número. Bem trajados, banhados, estudados e perfumados, estão em toda parte. São os que dão cobertura aos corruptos, devastadores do meio-ambiente, bicheiros e exploradores de jogos de azar, traficantes de drogas e exploradores do lenocínio, contrabandistas, sonegadores, ladrões dos cofres públicos e por aí a fora. Como se banham com frequência em suas mansões, não têm “cheiro de cangaceiros” mas suas almas são tão sujas quanto as deles. Talvez ainda mais.


(09 de novembro/2012)
CooJornal nº 812



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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