30/03/2012
Ano 15 - Número 780

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

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Enéas Athanázio

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal



No próximo dia 22 de outubro o início da Guerra do Contestado (1912/1916) estará completando um século. No correr do ano múltiplos eventos se realizaram para assinalar e discutir os acontecimentos e outros tantos estão previstos. Creio que a ocasião justifica algumas considerações a respeito de um movimento que, em que pese sua gravidade, continua pouco conhecido.


Monumento ao Contestado (Irani - SC)


OS ANTECEDENTES

A região que foi palco dos acontecimentos estava impregnada de misticismo. Como se sabe, dois foram (pelo menos) os monges de nome João Maria que palmilharam o Planalto em pregações e previsões apocalípticas. No imaginário popular, porém, ambos se unificam e confundem num só, como concluiu o pesquisador Nilson Thomé e eu próprio sempre observei.

O primeiro João Maria seria italiano, surgiu em Sorocaba em 1844 e desapareceu de circulação por volta de 1870. Seu nome era João Maria Agostini ou D’Agostini, e ficou conhecido como João Maria de Agostinho. Perambulou pelo Rio Grande do Sul e pelo Paraná, onde existe uma gruta na qual teria morado, nas proximidades da cidade da Lapa, e, certamente, pelo nosso Planalto. Expulso do Rio Grande, veio para Santa Catarina, onde permaneceu por alguns meses na Ilha do Arvoredo. Sua permanência na ilha é tema de um conto de José Boiteux, publicado no livro “Águas Passadas.” Pregava o uso de águas curativas, a abstenção de carne aos sábados, uma vida de respeito e penitência, além de plantar cruzes em 14 locais indicados, conforme a via sacra. Oswaldo Rodrigues Cabral foi o mais minucioso investigador dessa figura itinerante, sempre coberta pelo gorro de couro de jaguatirica e apoiado em seu cajado. Ele não se atritava com a igreja, de cujos postulados estava próximo, mas era declarado monarquista.


Estátua do monge João Maria (Irani - SC)

O segundo João Maria seria sírio de nascimento e tinha sotaque acastelhanado, tendo vindo de Buenos Aires, onde tudo indica que viveu por algum tempo. Chamava-se Anastas Marcaf e peregrinou longamente pelo Planalto entre 1890 e 1908 ou 1910. Ficou conhecido como João Maria de Jesus. Tinha alguma semelhança física com o primeiro, também pregava o uso de águas santas e a necessidade de erigir cruzes. Não tolerava aglomerações e nem permanecia muito tempo no mesmo local. Teve uma relação hostil com o clero católico, fazia batizados, tinha fama de milagroso. Afirmava que quem não sabe ler a natureza era analfabeto de Deus. Muito peregrinou pela região e diziam os crentes que se retirou para o Morro do Taió, onde se encontra até hoje, “encantado.” São unânimes os estudiosos em afirmar que ele foi o responsável pelo fanatismo religioso na região. Monarquista convicto, assumiu posição de independência em relação ao clero católico.

Decorridos de dois a quatro anos, entra em cena o monge José Maria, aquele que alguns consideram o “monge de guerra”, postura que outros põem em dúvida. Nessa altura exercia com sucesso o curandeirismo no povoado do Espinilho, no município de Campos Novos. Lá foi procurado por uma embaixada de crentes para liderar o reduto do Irani, assim ingressando na história.


O COMBATE DO IRANI

A região planaltina vivia ao abandono, esquecida dos homens. Revelava elevado índice de mal-estar social e descontentamento com a situação vigente. Lavrava uma revolta surda contra os coronéis latifundiários que dominavam a região e, por extensão, contra os padres, considerados seus aliados. Para agravar o quadro, com o término da construção da estrada de ferro, no trecho entre Porto União e Marcelino Ramos, cortando o Estado pelo Vale do Rio do Peixe, em 1910, grande número de operários, os chamados “arigós”, foram dispensados. Não bastasse isso, a Companhia Lumber (Southern Brazil Lumber & Colonization Company), um dos braços do Sindicato de Percival Farquhar, começou a expulsar os posseiros das terras adjacentes à ferrovia que havia recebido em pagamento pela construção da mesma. Para tal tarefa a Lumber trouxe dos EUA uma verdadeira milícia armada.

Toda essa gente e mais peões desempregados das fazendas, sem-terras, agricultores e pequenos proprietários em dificuldade passou a perambular sem destino e ocupação. Atraída por líderes carismáticos que brotaram em diversos pontos, começaram a se reunir em aglomerações improvisadas, os chamados redutos. Entre eles, floresceu o reduto do Irani, em local que o Estado do Paraná considerava seu. Uniram-se, então, as condições propícias à explosão. A revolta dos caboclos, a convicção monarquista, o fanatismo religioso, a miséria e o caos gerado pela questão de limites entre os Estados de Santa Catarina e do Paraná, ambos disputando o território e exercendo atos de soberania.

Entendendo que os caboclos estavam invadindo seu território, o Paraná enviou uma força armada para expulsá-los, comandada pelo coronel João Gualberto. Em 22 de outubro de 1912 ocorre o primeiro entrevero e nele perecem, num episódio raro nas crônicas guerreiras, os dois chefes. Morre o coronel, retalhado a facão pelos caboclos, e morre o monge José Maria, que teria sido baleado por Gualberto. A morte do monge ecoou como um brado de ódio e vingança pelos campos e matos e os caboclos intensificaram os ataques em toda a região. O monge foi sepultado em cova rasa para facilitar sua prometida ressurreição e o túmulo dele até hoje é bastante visitado.


Túmulo do monge José Maria (Irani - SC)

Homem de passado obscuro, chamava-se Miguel Lucena de Boaventura e proclamava ser irmão de João Maria. Diziam que seria desertor da Força Pública do Paraná. Tinha um aspecto feio, retaco, de andar gingado e dentes estragados, mas foi um líder nato.

Sua morte marca o início real das hostilidades.


A LUTA SE ESPALHA

Daí em diante a guerra se estende até 1916 e os insurgentes chegam a dominar grande território, calculado em um terço da área total do Estado no chamado Meio-Oeste, entre 30 e 40.000km2. Conhecedores do terreno e donos de uma coragem sobrehumana, praticavam uma guerra de guerrilhas que desnorteava as forças legais, atacando e recuando, usando da surpresa e da audácia. Outros redutos importantes e vários redutinhos surgiram, destacando-se os de Santa Maria (Timbó Grande) e Taquaruçu (Fraiburgo). Invadiram a vila de Curitibanos, reduto do coronel Albuquerque, queimaram os povoados de Calmon, inclusive a serraria da Lumber com suas instalações, São João de Cima e São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Nesta última, todos os homens aptos foram executados. Num equívoco lamentável, o capitão Matos Costa foi morto. Era um pacifista e entendia os reclamos dos caboclos; desejava evitar a mortandade de Canudos. Porto União esteve na iminência de ser invadida e grandes combates se travaram nas proximidades de Canoinhas.

Os redutos eram considerados cidades santas dirigidas por líderes inspirados pelas virgens santas. Elas tinham visões e diziam conversar com José Maria, dele recebendo orientação que transmitiam aos chefes. Ele orientava através delas sobre as estratégias guerreiras. Havia ainda os quadros santos, onde se faziam procissões e rezas, e o povoado permanecia guarnecido pelos Pares de França. O monge se tornou “encantado” e aparecia em vários lugares.

Os caboclos alimentavam a esperança da ressurreição de José Maria, que viria à frente do exército encantado de São Sebastião para impor a suprema derrota aos “peludos” (como chamavam os inimigos em contraposição a eles próprios, os “pelados”). O objeto dessa crença era o São Sebastião soldado romano que recebeu flechadas amarrado ao poste, embora às vezes pareça se confundir com o rei de Portugal que pereceu na batalha de Alcácer-Quibir.

Acossados pelo exército e pelas forças policiais dos dois Estados, os caboclos acabaram derrotados e seus redutos foram destruídos. A guerra, segundo dados oficiais, deixou um saldo de 10.000 caboclos mortos, embora a população local estime em muito mais, e 500 soldados. A região contestada guarda marcas profundas da terrível experiência e ficou empobrecida, muito abaixo dos padrões do restante do Estado e da região sul brasileira.

Até mesmo a aviação militar foi usada pela primeira vez mas sem sucesso. O piloto Ricardo João Kirk caiu com seu avião e pereceu.


Marco em homenagem ao tenente-aviador Ricardo João Kirk (Porto União - SC)


MINHAS MEMÓRIAS DO CONTESTADO

Por circunstâncias da vida, nasci e cresci dentro do território do Contestado. Por essa razão, o assunto me é familiar desde a infância, embora o povo em geral o denominasse de Revolta dos Jagunços. Presumo que o nome Contestado foi atribuído mais tarde por historiadores e militares e nisso foi infeliz porque sugere uma guerra entre Santa Catarina e o Paraná que jamais aconteceu.

As referências ao assunto, mesmo nas escolas onde estudei, foram sempre raras. Parecia existir um secreto pudor ou vergonha dos acontecimentos, considerados atitudes de “fanáticos e bandidos”, o que causou grande prejuízo porque numerosas fontes de informação desapareceram com o correr dos anos. As pessoas simples do povo, no entanto, não escondiam o que sabiam e foi delas que ouvi muitos relatos.

Como meu padrasto fosse funcionário da Companhia Lumber, em Calmon, muitas férias de colégio passei nessa vila, então distrito de Porto União e hoje município. A outra sede da Lumber ficava em Três Barras. Conheci o local onde se erguia a serraria que foi incendiada, à margem direita da ferrovia, num chapadão fronteiro à estação. O clarão provocado pelo incêndio, alumiando o sertão em derredor, nunca foi esquecido pelas pessoas mais antigas. Ainda pude ver peças de máquinas da indústria, importadas, calcinadas pelo fogo e que resistiam à intempérie a que ficaram relegadas. Nas proximidades, com águas viscosas e escuras, abria-se grande poço onde o povo comentava terem sido encontradas ossadas de pessoas decapitadas nas terríveis degolas a facão. Nesses meus dias de criança o poço ali permanecia, cercado por um tapume, como testemunha muda de dias trágicos. Chamavam-no de Poço dos Jagunços e creio que foi atulhado.

Andei, naquela época, por lugares onde ocorreram grandes combates, inclusive aquele onde foi morto o capitão Matos Costa, cerca de três quilômetros ao norte da estação dessa cidade, mais ou menos no ponto em que a estrada velha cruzava sobre os trilhos, segundo antigos moradores.

Na região de Calmon e Matos Costa o povo votava ódio aos americanos da Lumber, aí incluídos os funcionários graduados que vinham do Rio de Janeiro e de Três Barras.

Em Campos Novos, minha terra natal, no período em que lá residi, andei seguindo os passos de José Maria, mas o que descobri foi muito vago e as pesquisas não pareciam ser vistas com bons olhos. É um assunto em aberto.


Marco alusivo ao acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná, plantado na
divisa dos Estados (Porto União - União da Vitória)


NATUREZA DO CONFLITO

Segundo os historiadores, o Contestado teria sido uma guerra. Para o povo, porém, foi uma revolta e creio que esta é a definição mais próxima da realidade. Porque, na verdade, tanto do ponto de vista sociológico como jurídico, esse movimento foi uma revolução com todas suas características. Ela brotou de baixo para cima, de forma espontânea e resultou de profundo mal-estar social e das dificuldades econômicas enfrentadas pelo povo menos favorecido. Visavam seus participantes substituir a ordem vigente, de forma violenta, por outra mais justa na qual pudessem viver à sua maneira. “A origem e a causa das revoluções – escreve o Prof. Paulo Bonavides – se prenderia a uma lenta acumulação de descontentamentos e impugnações da ordem de valores implantados ou impostos até a chegada de um momento crítico de deteriorização final. Os golpes de Estado podem ser improvisados, as revoluções jamais.” E mais adiante: “A crise política que produz as revoluções leva por conseguinte ao paroxismo a contradição entre o ‘poder de cima’, minoritário, e o ‘poder de baixo’, majoritário” (“Ciência Política”, Forense, 4ª. ed., 1978, pág. 503).

Como ensina o renomado mestre, revoluções em países subdesenvolvidos constituem manifestação do desejo de mudança e de progresso. São um tranco, um abalo que sacode estruturas que necessitam de renovação. E assim, sem querer e sem saber, os caboclos do Contestado fizeram uma revolução, talvez arcaica, sem ideologia ou programa pragmático, mas que ficou na história como o maior levante popular do país. Foram precursores das grandes revoluções da primeira metade do século passado, entre elas a de 1930.


Araucária, objeto de intensa cobiça (Foto: Fernando Tokarski)


HISTÓRIA E LITERATURA

Nos dias atuais é grande o interesse pelo estudo do Contestado, o que tem gerado uma vasta bibliografia, em sua maioria na área histórica. Na ficção e na poesia não são muitos os trabalhos publicados.

Entre os pioneiros, merecem citação Oswaldo Rodrigues Cabral e seu volumoso ensaio “João Maria.” Não se pode esquecer “Geração do Deserto”, de Guido Wilmar Sassi, o primeiro a encarar os fatos como um movimento e uma visão global. É um romance histórico. Foi vertido para o cinema por Sylvio Back com o título de “A Guerra dos Pelados.” No gênero histórico, é relevante o livro “Planaltos de frio e lama”, de Demerval de Oliveira, minucioso e metódico. Entre os mais recentes, registre-se “Lideranças do Contestado”, de Paulo Pinheiro Machado, e “Contestado – A guerra dos equívocos”, de Walmor Santos, este também romance. Por fim, não se podem omitir os vários livros de Nilson Thomé e suas incansáveis pesquisas.

Guido Wilmar Sassi, um pioneiro

Nilson Thomé, incansável pesquisador


CONSEQUÊNCIAS E LIÇÕES

O Contestado marcou fundo a região onde se deram os mais violentos conflitos. Apesar de tudo, porém, o abandono continuou e os investimentos públicos foram e continuam sendo escassos. A estrada ligando Caçador a Porto União, passando por Calmon, Matos Costa e São Miguel da Serra, vital para a economia, só foi asfaltada há poucos anos e já apresenta sérios problemas de manutenção. A Lumber, associadas e sucessoras cortaram uma quantidade imensa de araucárias e madeiras de lei, nada deixando em troca. Nem uma obra pública, um melhoramento urbano, uma escola, um hospital. Até a estrada de ferro, causadora de tantas tragédias, foi desativada e está entregue à intempérie e ao vandalismo. Nada restou. Analisando índices comparativos, afirma-se que a região é hoje um Nordeste dentro da região Sul. Não obstante, os moradores lutam com bravura na esperança de dias melhores.

Segundo os historiadores, a história é estudada para evitar os erros do passado. Se a história só se repete como farsa, os erros podem se repetir indefinidamente. Nas regiões por onde tenho andado não me parece que o Contestado tenha servido de lição. Vejo com apreensão que o latifúndio se ampliou em detrimento das pequenas propriedades, engolindo-as, e que a região é manipulada por poucos e grandes grupos empresariais.

B. Camboriú, 14 de fevereiro de 2012.

(30 de março/2012)
CooJornal nº 780



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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