23/03/2012
Ano 15 - Número 779

ENÉAS ATHANÁZIO
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Enéas Athanázio


O ROMANCE DE UM SOLITÁRIO

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Como uma leitura puxa a outra, acabei relendo “O Egípcio”, de Mika Waltari, que havia lido pela primeira vez aos 22 anos de idade. A edição que possuo é a décima e foi publicada pela extinta Editora Mérito, em 1956, com tradução de José Geraldo Vieira, o conhecido autor de “A Ladeira da Memória.” Nascido em Helsinque, na Finlândia, Mika Waltari (1908-1970) publicou este romance em 1945, no final da II Guerra Mundial, e o livro logo se transformou num best-seller mundial, traduzido para mais de 40 idiomas, inspirando célebre filme e adaptações para o teatro. Waltari pertenceu à Academia Finlandesa de Letras, era formado em Filosofia, mas não chegou a receber o Prêmio Nobel, embora produzisse outros romances de grande aceitação da crítica e dos leitores.

Segundo historiadores, “O Egípcio” seria ambientado cerca de mil e duzentos anos antes de Cristo, na época em que Tebas foi a capital egípcia, o que permite imaginar o vulto da pesquisa necessária para a realização dessa obra. O romance constitui uma espécie de memorial fictício de Sinuhe, filho de pais desconhecidos e que foi encontrado por um médico dos pobres boiando num barquinho de verga entre os caniços da margem do rio Nilo. Adotado pelo médico e a esposa, foi por eles criado, tornando-se também médico e, mais tarde, trepanador do faraó, convivendo com a corte e o próprio soberano. Desinteressado dos bens materiais, alternou fases de grande fortuna e pobreza que beirava à miséria. Impulsivo, apaixona-se por uma mulher tão bela quanto maligna, doando a ela todos os seus bens e até mesmo a tumba dos pais. Na sequência, vai perdendo as duas mulheres que ama, uma a uma, assim como o pequeno filho, tornando-se afinal um solitário durante toda a existência. Acaba por descobrir que tinha sangue real e poderia, em tese, ser coroado faraó, mas isso de nada lhe valeu.

Enquanto os anos passam e o relógio de água mede o tempo, vai registrando os eventos da própria vida e testemunhando larga fase da história do país e da região. Viaja por terras estranhas buscando aprimorar sua ciência, espiona exércitos de outros países, acompanha os batalhões em sangrentas guerras, participa de decisões políticas de relevância e até contribui com sua arte para abreviar os dias de um faraó e de um príncipe hitita. Amigo de Horemheb, futuro general comandante das tropas egípcias, ajuda-o em várias ocasiões, ainda que venha a pagar muito caro por tal amizade. Para compensar, é amparado pelo seu ex-escravo Kaptah e pela serva Muti que o socorrem em situações extremas.

O painel retratado no livro do mundo egípcio da época é monumental. Em linguagem esmerada, busca retratar o ambiente com a maior autenticidade e os diálogos discursivos, típicos daquele tempo remoto, são impressionantes. Algumas cenas são inesquecíveis, como a discussão dos termos da paz entre os representantes egípcio e sírio, em que cada um deles repuxa suas roupas, desespera-se, lamenta-se e lança cinzas sobre a cabeça para afirmar que está sendo lesado pelo outro, enquanto no íntimo vai saboreando as vantagens que obtém. As consequências da política pacifista imposta pelo faraó, repudiando o poderoso deus Ammon em favor do novo deus Aton, e pregando a igualdade entre os homens são descritas de forma minuciosa e admirável. Mas os conservadores acabam por vencer e tudo volta a ser como antes. Com a agravante de que Horemheb se torna faraó e pai de Ramsés, o soberano que iria fundar a nova dinastia que elevou o país à sua maior glória. (Segundo a história real, Horemheb parece que não teve filhos).

Retomando a clínica e tratando dos pobres, depois de mil peripécias, Sinuhe não se conforma com o enriquecimento cada vez maior dos ricos e a miséria ilimitada dos pobres. Não esconde o que pensa, fala e critica, e acaba caindo em desgraça junto ao faraó, seu ex-amigo Horemheb, agora no sexto ano do reinado. Torna-se um subversivo, assim como serão subversivos ao longo da história todos que se opõem ao statu quo. Intimado ao palácio, é banido do país em caráter perpétuo, assim como aqueles que o acompanharem, poupada sua vida em face da antiga amizade com o todo-poderoso. É enviado a uma aldeia semi-deserta à beira-mar, onde deverá permanecer até o fim de seus dias dentro de limites traçados. Vai ter com ele a fiel Muti, que o alimenta e trata, e recebe com frequência víveres e presentes de Kaptah, agora um dos homens mais ricos do país. “Nunca mais poderei sentir o cheiro da terra negra pelas noites de primavera; nunca mais ouvirei os caniços das margens sussurrarem ao vento primaveril...” – lamenta ele na imensa solidão vitalícia.



(23 de março/2012)
CooJornal nº 779



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


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