08/03/2012
Ano 15 - Número 777

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

Enéas Athanázio


 AMEMOS A ILHA!

Enéas Athanázio - Colunista, CooJornal

Suspeito de que ele tivesse outras, mas Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) confessou que alimentava a utopia de comprar uma ilha. “Quando me acontecer alguma pecúnia, - escreveu ele – passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.” Depois de divagações a respeito, pesando prós e contras, estabelecendo uma regulamentação mínima para o viver ilhéu, conclui por conclamar os leitores: “Amemos a ilha!”

Não me consta que tenha comprado a ilha, fosse por não ter acontecido o milhão de cruzeiros ou por esquecimento, envolvido talvez por utopias outras. Mas como não existe limite ao sonho do escritor, creio que ele o realizou em forma de livro, escrevendo uma de suas reconhecidas obras-primas. “A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo” – disse ele. E nasceu assim o livro “Passeios na Ilha – Divagações sobre a vida literária e outras matérias”, cuja terceira edição, ampliada e acrescida, vem de ser lançada pela Cosac Naify, sem dúvida a mais sofisticada editora nacional (S. Paulo – 2011). Com primorosa feição gráfica, o volume contém crônicas variadas, páginas de memórias, perfis de escritores, apreciações críticas, prefácio e posfácio, fortuna crítica, bibliografia e esmeradas notas, além de interessante material iconográfico. É excelente amostragem para um reencontro com a prosa de Drummond.

Entre as crônicas coligidas, uma delas me diz mais de perto porque aborda a figura e a obra de Godofredo Rangel (1884-1951), escritor sobre quem tanto tenho escrito e falado e, ao que parece, quase em vão, tal o renitente esquecimento em que permanece. Em “Godofredo Rangel: Um Delicado”, Drummond lastima não ter convivido mais com Rangel, acentua sua modéstia e humildade que causavam a impressão de pedir desculpas por ser escritor de talento. Transcreve trechos da carta de Milton Campos em que ele relata a visita que fez a Rangel, juiz numa “biboca arredia de civilização”, e sai impressionado com o magistrado e o escritor, figura magra, envelhecida antes do tempo e que parecia padecer de fortes dores. Louva sem restrições as passagens de uma novela que Rangel escrevia e leu para ele. A crônica é um retrato autêntico e constitui bela homenagem ao autor de “Vida Ociosa.”

Godofredo Rangel não foi bafejado pela sorte; diria mesmo que foi um azarado. A íntima amizade com Monteiro Lobato, editor poderoso, crítico influente e o escritor mais prestigiado da época, em vez de ajudá-lo só o prejudicou; apesar de seu talento, nunca mereceu o reconhecimento em sua própria terra e se defrontou com críticos ferozes e injustos. Edgard Cavalheiro, por exemplo, dizia que Lobato obrigou Rangel a ser o escritor que ele não era e sabia que não poderia ser, criando uma falsa expectativa, o que não é verdade, como constatei em meus estudos a respeito. Wilson Martins, ao que tudo indica sem conhecer toda a obra de Rangel, desancou-o ao comentar a biografia que escrevi. Embora reconhecendo meu trabalho, foi implacável com Rangel. Poupou o biógrafo, não o biografado.

Por tudo isso, a inclusão da crônica sobre ele neste belo livro foi um ato de justiça. Merece parabéns a Cosac Naify pela bela obra realizada.


(08 de março/2012)
CooJornal nº 777



Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC


Direitos Reservados