16/12/2011
Ano 15 - Número 766


ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO


 

 

Follow RevistaRIOTOTAL on Twitter

 

Enéas Athanázio




 EXERCÍCIO DE IMAGINAÇÃO



 

Enéas Athanázio, colunista - CooJornal

Lendo o livro de Paulo Markun (*), figurei um cenário que, embora imaginário, é coerente com a realidade da época. Corriam os anos 1540 e as grandes navegações portuguesas e espanholas assombravam os povos com as novas descobertas. Numa aldeia indígena, no litoral catarinense, os índios carijós se entregavam aos seus rotineiros afazeres. Alguns homens preparavam as canoas e arpões para a pesca, outros consertavam as coberturas das choças, as mulheres mourejavam nas roças próximas e a criançada se entregava às lutas – ou aloites – em que se preparavam os futuros guerreiros. O pajé sugava seu longo cachimbo, expelindo intensas baforadas de fumaça azulada, e o cacique repousava em sua rede, talvez ruminando sobre os destinos da tribo que lhe cabia comandar. Em pleno mês de abril, o céu azul estava límpido e o mar calmo beijava a praia em ondas suaves. Mais para o interior, a mata atlântica inceira verdejava e de seu interior vinham pios de pássaros e alguns gritos de animais silvestres.

Entretidos nas suas lidas, os adultos nada notaram de anormal, até que um garoto desceu às pressas de uma árvore e correu em direção ao pai, apontando apavorado para o mar. Parece sina das crianças enxergar o que os outros não veem. A atitude daquele curumim despertou a atenção geral e todos se voltaram para o local indicado. E lá se avistava algo inédito e assustador, de cuja existência jamais suspeitaram. Balançando com suavidade sobre as ondas, imensa embarcação fundeava. Com o casco acinzentado pela intempérie, de aspecto escuro e sem brilho, estava arriando as enormes velas brancas que estampavam grandes cruzes negras. No convés apareciam numerosas pessoas e logo os barcos começaram a ser baixados e seus remadores os impeliam para a praia, cada um transportando seres de outro mundo, nunca jamais avistados. Pasmos, como que petrificados, os indígenas observavam com os corações aos pulos. Embora ignorassem, tratava-se de uma nau espanhola em busca da Serra de Prata.

Quando chegaram à praia, os estranhos puderam ser melhor contemplados pelos índios. Assombrados, notaram que trajavam roupas esquisitas, puídas, molambentas e mal cheirosas em virtude do longo uso. Em contraste com os indígenas semi-nus, de pele acobreada, lisa e brilhante, tisnados pelo sol e vigorosos, estavam sujos e barbados, com os cabelos engrovinhados, e expelindo uma inhaca que podia ser sentida à distância. Nas faces encovadas, as feridas do escorbuto eram repelentes. E nas mãos portavam instrumentos misteriosos, seus canos terminavam numa espécie de funil, cuja utilidade os índios desconheciam – os temíveis bacamartes.

Cordiais e pacíficos por índole, os carijós receberam os estranhos de maneira amigável, oferecendo-lhes alimentos e água cristalina. O morubixaba deixou seus cômodos para saudá-los, deferência só conferida a pessoas muito especiais. Os recém-chegados logo se puseram à vontade, demonstrando invulgar interesse por objetos que pudessem indicar a existência de prata ou pedras preciosas. Sem a menor cerimônia, tudo foram invadindo, vasculhando, apalpando, enquanto um deles fazia incompreensíveis rabiscos em folhas brancas. O chefe – ou “principal” – logo se destacou e passou a dar ordens como se tudo lhe pertencesse, ignorando olimpicamente as presenças do cacique e do pajé. Alguns se apropriaram de mulheres, outros colheram mantimentos nas roças próximas ou se puseram a matar pássaros e animais nas matas vizinhas, detonando tremendos estouros com os terríveis bacamartes. Não tardou a ficar claro que os recém-chegados vinham com ânimo de permanecer e logo trataram de plantar uma cruz nas areias da praia, ao pé da qual um deles, com vestimenta diferente, espécie de saia, fazia gestos e murmurava palavras enquanto os demais ouviam contritos. Outras embarcações começaram a chegar, vindas das distâncias ignotas do mar-oceano, e a quantidade dos estranhos aumentou. Em pouco tempo os índios se viram forçados a fazer o que lhes determinavam e tinham que participar das cerimônias aos pés da cruz, ainda que não as entendessem. Surgiram entre eles doenças desconhecidas para as quais não tinham remédios naturais e a gripe muitas vezes matava as crianças. Na sua experiência ancestral, transmitida de pai para filho, intuíram que o aparecimento daquela embarcação escura e feia coincidia com o inicio de seu fim. Muitos fugiram para as matas mas foram perseguidos e caçados como animais, preados e trazidos de volta. E assim os caraíbas se estabeleceram e tudo dominaram.

Até que um dia o “principal” convocou uma reunião de todos, sem exceção, no pátio central da aldeia. Ali foi lido um documento jurídico obrigatório, determinado pelo rei, a que denominavam “requerimento.” Através desse pronunciamento especial, “comunicavam aos índios, entre outras coisas, que os conquistadores tinham vindo para ensinar-lhes bons costumes, evitar práticas condenadas, como o canibalismo, e iniciá-los no catolicismo. Concluía oferecendo uma alternativa aos conquistados: ou aceitavam a fé cristã e juravam obediência à Coroa, ou seriam submetidos à guerra e à escravidão. A recusa em aceitar o “requerimento” era considerada motivo justo para a guerra” (Pág. 107). Ou seja, a alternativa era muito justa: ou crê ou morre!
Depois tomou posse da terra com tudo que nela se continha.
Em nome do imperador.
_________________________________
(*) “Cabeza de Vaca”, Paulo Markun, S. Paulo, Cia. das Letras, 2009.


(16 de dezembro/2011)
CooJornal no 766


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados