10/06/2011
Ano 14 - Número 739


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




CHEIRO DA TERRA



 

Enéas Athanázio, colunista - CooJornal

Dizia Câmara Cascudo que não oferecia e nem rezava por escritor que não tivesse o pó da terra natal debaixo dos pés da alma. E, de fato, por mais que se afaste dela, a pessoa carrega consigo, pelos anos a fora, o visgo do chão onde nasceu. Por maiores que sejam as vivências e aventuras, por baixo da carapaça cosmopolita continuará habitando o filho do lugar em que o dedo do destino o trouxe ao mundo. Isso, no caso do escritor, acaba se revelando de alguma forma, mais cedo ou mais tarde. O próprio Monteiro Lobato, após as tribulações de uma vida frenética, declarava com humildade que o verdadeiro Jeca Tatu, na verdade, era ele próprio. Por tudo isso, podemos rezar e oferecer por José Ribamar Garcia porque ele celebra sua terra, da qual está ausente há longos anos, num livro delicioso e que reúne um punhado de crônicas sobre Teresina de sua infância, aquela que reteve nos misteriosos escaninhos da memória, e que agora retorna no livro “Imagens da Cidade Verde” (Litteris Editora – Rio – 2008).

As páginas do livro revelam um cronista feito e acabado, num gênero que tem encontrado poucos expoentes destacados entre nós. Fino observador, ele se mantém com as antenas sempre ligadas, pronto a captar os temas cronicáveis e convertê-los em crônicas vivas e curiosas, dessas que prendem o leitor de forma irremediável. Dotado de admirável memória, não esquece dos pormenores e parece ter conservado intacto o que sentiu em situações e momentos que já vão longe no tempo e que, no entanto, revividos por ele, parecem fatos de hoje. É interessante notar que as crônicas, mesmo sem essa intenção aparente, vão revelando uma existência vitoriosa em que o menino de poucos recursos supera mil obstáculos e se transforma em exitoso advogado no Rio de Janeiro. As crônicas acabam se tornando uma bela lição de vida.

No correr das páginas a Cidade Verde, como a batizou Coelho Neto, vai se desenhando aos olhos do leitor. O rio Parnaíba, plácido e sereno, com suas “coroas” à mostra, desliza vagaroso para o Delta, num dos mais belos espetáculos da natureza. Canoas silenciosas singram as águas e os pescadores recolhem o peixe que é devorado ali mesmo, sobre uma das “coroas”, enquanto as mangas caem num baque seco das árvores ribeirinhas. A brisa sopra de leve, amenizando o calor intenso, enquanto os sons urbanos chegam esmaecidos. O rio é uma presença forte, vem de longe, carregado de histórias, de lendas e de mistérios. Mas é também recreio e diversão para a juventude descontraída que mergulha nas águas tépidas e se bronzeia em suas margens.

E outros marcos da cidade vão surgindo. O Theatro 4 de Setembro, centro de memoráveis eventos culturais, o Clube dos Diários, os colégios, os cinemas, a estação ferroviária, onde desciam em grandes magotes de famintos os retirantes da seca, o aeroporto, as praças e os parques, as ruas mais famosas, cada qual com sua própria fisionomia, as figuras populares, os botecos e a garapeira, o mercado velho, o estádio e até a penitenciária “com seu muro coberto por fios elétricos descascados” e que fascinava o garoto curioso por saber o que ocorria no interior do casarão soturno e feio. Lembra a figura do governador João Luís Ferreira, engenheiro civil que fôra colega de Lima Barreto na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Ele havia prometido ao então colega e futuro escritor que o levaria ao Piauí como diretor da Imprensa Oficial. A promessa não pôde ser cumprida porque naquela altura Lima Barreto, consumido pelo álcool, vivia sob tratamento e foi até recolhido ao hospício, conforme relata em suas memórias. E com isso o Piauí perdeu a oportunidade de conviver com o genial escritor – lamenta, com razão, o cronista. Como homenagem rara a um simples homem do povo, a cidade deu a uma de suas vias públicas o nome de Francisco de Assis Garcia, humilde vendedor de garapa, o pai do autor. Aliás, lá existe também a rua Eletricista Guilherme, homenageando outro morador humilde.

O livro, além de leitura saborosa, é um documento fiel sobre Teresina daquela época. Ele muito me ensinou a respeito do Piauí, sua capital e sua gente, essa mesma gente que me acolheu como cidadão honorário e que tantas gentilezas me tem atribuído. É um livro que contribui também para tornar mais conhecida dos brasileiros a simpática Cidade Verde, enlaçada pelas curvas do Parnaíba, o Velho Monge do poeta.


(10 de junho/2011)
CooJornal no 739


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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