12/06/2010
Ano 13 - Número 688


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




A CASA FECHADA



 

Enéas Athanázio, colunista - CooJornal

No seu silêncio abissal, aquela casa atrai muito mais minha atenção do que se nela houvesse uma banda roqueira em permanente função. Situada nas redondezas da minha, nada tem de extraordinário ou incomum, exceto o fato de que permanece sempre fechada, ainda que nela viva um homem. Abre-se a temporada, os veranistas vêm e vão, seguem-se o outono e as friagens invernais, o ciclo vital se repete, os dias, os meses e os anos se escoam para o poço sem fundo do tempo e ela, solitária e silenciosa, permanece fechada. Construção de dois pisos, em sólida alvenaria, ostenta três janelas na parte superior e duas outras, separadas por uma porta, no piso inferior. Na única lateral visível, não encoberta por outras construções, duas pequenas janelas, estreitas e compridas como seteiras, são o único indício de vida: estão sempre iluminadas e, às vezes, deixam a impressão de que uma cabeça por elas espreita em olhares rápidos e furtivos. Na reluzente pintura branca, nem de longe apresenta aspecto de moradia abandonada. No pátio fronteiro, vazio e desolado, não há uma árvore, uma trepadeira, um verde, uma flor. E aquele silêncio permanente me traz à memória, não sei qual a razão, o romance “A Casa Soturna”, de Charles Dickens, lido na já remota juventude.

Quando levanto pela manhã e vou à porta para cumprimentar o novo dia ela está fechada; após o almoço, ao sentar-me na área, ela continua fechada e à noite, quando me recolho, ela teima em permanecer fechada. As aberturas a que chamamos janelas, criadas para permitir a renovação do ar, a ventilação, a penetração benfazeja dos raios solares e a extensão da vista pela paisagem circundante, inclusive do mar tão próximo, na casa branca parecem pregadas, parafusadas, herméticas. Imagino cá com os comigos de mim – como dizia Fernando Pessoa – o ar pesado, carregado de mofo, bolor e poeira velha que irá lá por dentro. Mas o tempo passa, os dias e as noites se sucedem e o homem solitário vive na casa misteriosa, talvez tateando na obscuridade reinante, isolado do mundo e das gentes. Em que se ocupa, o que faz, como preenche seu tempo constituem mistérios insondáveis. Qualquer indagação aos moradores da redondeza é respondida com o mesmo encolher de ombros: ninguém sabe.

Tão logo cai a noite e as sombras recobrem a cidade praiana, a casa se transforma num imenso vulto branquicento e silencioso, mal delineado pela luz baça da rua. Suas linhas rígidas e retas perdem a nitidez e tudo sucumbe à escuridão, até que, num renovado indício de vida, as janelinhas laterais, estreitas e longas como seteiras, se acendem numa claridade fraca e vacilante. Através delas, em observações ligeiras e furtivas, alguém observa de relance o que ocorre cá fora, como quem estuda a situação. Em minutos, no mais completo silêncio, a porta da rua se abre e por ela sai o ermitão que ali vive. Seus trajes são escuros, de cores neutras, e sua fisionomia não se distingue na noite densa sob a aba do boné que lhe cobre a cabeça. Cabisbaixo e quieto, em passos firmes e rápidos, ele se dirige ao orelhão da esquina, de onde dispara misteriosas ligações, falando na voz baixa de quem não deseja ser ouvido por intrometidos. Depois, no mesmo andar rápido e medido, se dirige à mercearia próxima, prestes a encerrar as atividades do dia, e dali sai portando pequena sacola de compras. A casa branca o engole, a porta se fecha e as janelas herméticas continuam fechadas.

Tanto a casa como seu único morador fecharam as janelas de comunicação com o mundo. Fico me indagando se ele terá fechado também as janelas da alma.


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Estive no Nordeste. Trocando pernas por Olinda, surgiu um cantador de viola em punho. Fez alguns versos para minha mulher, depois para mim e de repente saiu-se com esta:

“Em Balneário Camboriú,
já pisei naquela areia,
onde o prefeito Edinho
foi parar na cadeia!”

Como diz o povo, notícia ruim é como paulada – chega num já!



(12 de junho/2010)
CooJornal no 688


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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