08/05/2010
Ano 13 - Número 683


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




MEMÓRIAS VIVAS



 

Enéas Athanázio, colunista - CooJornal

A publicação de um livro de memórias é uma espécie de prestação de contas. Através dele o autor comparece diante dos leitores, seus presumíveis amigos e simpatizantes, para mostrar como gastou os anos de vida e o que realizou de útil ou interessante. Como as memórias se constituem de relatos sobre fatos ou pessoas reais, é um gênero que dispensa maior dose de imaginação e foi, por isso mesmo, considerado um gênero literário menor ou um subgênero. Mas a verdade é que as memórias, autobiografias e biografias desfrutam hoje de muito prestígio e têm grande quantidade de leitores. Ler bons livros de memórias é uma forma de aprender com a experiência alheia. É claro que o interesse desses livros depende da própria vida do narrador, pois uma existência movimentada e rica em realizações fornece matéria mais atraente e curiosa que a mera vivência rotineira e cotidiana, ainda que quase todos imaginem que suas vidas dariam romances. A qualidade do escritor também influi no resultado, tanto que grandes escritores, como Humberto de Campos, Gilberto Amado e Pedro Nava, por exemplo, foram extraordinários memorialistas. Os dois últimos se consagraram e conquistaram espaço na história literária como autores desse gênero.

Essas idéias me ocorrem ao terminar a leitura de “Minhas Memórias”, de Hélio Pereira Bicudo (Martins Fontes – S. Paulo – 2006), conhecido jornalista e homem público que tive a oportunidade de conhecer em Blumenau, onde ele proferiu conferência sobre tema jurídico. Modesto e discreto, ele teve uma existência repleta, exercendo cargos no Ministério Público, no qual ingressou por concurso, no Executivo, municipal e federal, e no Legislativo, como deputado federal em duas legislaturas, além de ter exercido funções em órgãos relacionados aos direitos humanos no Exterior. Toca-me mais de perto a primeira parte, quando rememora a luta do Promotor de Justiça, ainda muito jovem, nas comarcas do interior paulista. Guardadas as proporções, vejo-me a mim próprio empolgado pelas mesmas batalhas, em especial na luta em favor dos empregados, como curador trabalhista, se debatendo contra maus patrões, a batalha sem trégua contra os sonegadores do fisco e suas eternas maquinações para não pagarem impostos e, acima de tudo, a luta solitária para impedir a eterna tentativa de maus políticos de influírem nos julgamentos da Justiça Criminal, e, mais ainda, nas decisões do Tribunal do Júri. Embora a experiência dele nesse campo tenha sido anterior à minha, a semelhança foi muito grande, revelando que as coisas em geral pouco haviam mudado e, pelo que vejo e leio, permanecem ainda hoje mais ou menos as mesmas, mesmo dispondo os Promotores de hoje de uma legislação melhor de que não dispúnhamos então. Foi empolgante a passagem de Hélio Bicudo pelo Ministério Público.

Outro momento admirável de sua trajetória foi a luta contra o chamado Esquadrão da Morte. Solitário e sem apoio, contrariando os altos escalões e interesses velados da própria ditadura, enfrentou todas as dificuldades e exibiu ao país as barbaridades que se cometiam contra presos indefesos, na calada da noite, executados de forma sumária e sem julgamento. Com a mesma coragem com que agiu, dá nome aos bois e aponta os que acobertaram e até incentivaram aqueles assassinos, entre eles o governador biônico Abreu Sodré que, em público, posava sempre de democrata. Sofrendo ameaças pessoais e à família, invasão de seu escritório em busca de papéis, perseguições sem conta, discriminações e tudo mais, não arredou pé e levou as investigações até seu afastamento sumário da direção dos trabalhos “por ordem superior.” Num livro extraordinário, que teve dificuldade para ser publicado, narrou em minúcias essa luta desigual e perigosa: “Meu depoimento sobre o esquadrão da morte.”

Esses, porém, são apenas dois lances de sua vida. Muitas e muitas outras foram suas batalhas, sempre voltadas à defesa dos mais fracos e dos direitos humanos, integrando uma guerra que nunca terá fim e que precisa sempre arregimentar novos soldados: a guerra pela implantação de uma democracia real e não apenas formal em nosso país.


(08 de maio/2010)
CooJornal no 683


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados