17/04/2010
Ano 13 - Número 680


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




OS LUGARES DO MEIO



 

No mundo moderno, grandes aventuras são quase impossíveis. Tudo parece devassado, conhecido, invadido pelos hábitos civilizados que igualam os homens. Talvez seja essa a razão pela qual o livro “Os lugares do meio”, de autoria de Rory Stewart (Editora Record – Rio – 2008) tenha alcançado tanto sucesso, embora pouco lido entre nós. Calorosas foram as resenhas publicadas nos maiores jornais americanos e europeus, saudando o relato de uma aventura inacreditável e que exigiu coragem e disposição invulgares. É que o livro relata, nada mais nada menos que a travessia solitária e a pé de todo o Afeganistão, desde Herat até Cabul, logo após a invasão americana, afastando o Talibã do poder, quando o país, um dos mais turbulentos recantos do mundo, estava mergulhado no caos e na violência.

Andarilho incansável, que já havia percorrido a pé outros países, Rory Stewart ansiava por cruzar o Afeganistão desde Herat, nas proximidades da fronteira do Irã, até Cabul, próxima ao Paquistão, contrariando opiniões e conselhos dos que consideravam a excursão uma rematada loucura da qual não sairia vivo. Escolheu a rota interior, isto é, pelos lugares do meio, justamente a menos conhecida e mais perigosa. Descobriu que o rei Babur, o primeiro imperador mongol da Índia, quatrocentos anos antes, fizera o mesmo roteiro, com a diferença de que estava amparado por um exército, ao passo que ele partia desarmado, sozinho e a pé, levando apenas um cajado e uma mochila. O diário do rei, ainda que muito antigo, continha importantes informações geográficas, embora estivesse superado no restante. Colocando o pé na estrada, onde elas existiam, e realizando jornadas de quarenta quilômetros diários, percorreu em trinta e seis dias a distância entre as duas cidades, num total de 1440 quilômetros. Alquebrado, esgotado, magro, com problemas digestivos, cabeludo e sujo, chegou à capital do país depois de ter peregrinado pelos mais inacessíveis lugares onde um “infiel” não se arriscava a colocar os pés.

No decurso da viagem, viveu as mais estranhas e curiosas experiências. Cada povoado constituía um enigma a ser decifrado com habilidade diplomática, apalpando e observando, uma vez que nunca poderia prever para quem se inclinavam suas simpatia: os russos, o Talibã, a Al-Qaeda, o islã, o cristianismo, os americanos etc. Tratava-se de um quiproquó difícil de resolver, envolvendo sunitas e xiitas, etnias e origens as mais variadas e uma profusão de idiomas e dialetos, onde um passo em falso poderia lhe custar a vida. Afora, porém, algumas pedradas na cabeça, socos no rosto, tiros que erraram o alvo e ataques de cães furiosos foi em geral tratado com respeito. Obteve cartas de apresentação que lhe abriam as portas e quase sempre foi acompanhado por algum caminhante espontâneo em alguns trechos. Numa das vilas ganhou um cachorro semi-selvagem, enorme, mas fraco e desnutrido, que encontrava dificuldade para acompanhá-lo nas jornadas diárias e morreu antes de chegar ao destino. Em homenagem ao rei, recebeu o mesmo nome: Babur. Vencendo os mais incríveis obstáculos, galgou montanhas empinadas, desceu gargantas assustadoras, percorreu trilhas inóspitas e caminhos onde a neve tudo encobria, cruzou rios e lagos congelados, dormiu no chão, tiritando de frio, e se alimentou quase sempre de pão seco, arroz, e, às vezes, alguns nacos de carne de carneiro. Cruzou desertos áridos e ressequidos onde a presença humana não existia e galgou o pico do Paropamisus, de onde Aristóteles acreditava ser possível ver os confins orientais da Terra. Dormindo com um olho aberto, desconfiado e temeroso, não raro em locais também ocupados por estranhos, concluiu com sucesso uma das mais incríveis aventuras possíveis nos dias de hoje e trouxe uma visão correta do Afeganistão atual, em geral pouco conhecido. Desenvolveu na plenitude a virtude da paciência para suportar intermináveis controvérsias sobre assuntos sem a menor importância.

Mais incrível ainda é o desfecho da história. Apaixonado-se pelo Afeganistão, deixou a Europa e vive hoje em Cabul.


(17 de abril/2010)
CooJornal no 680


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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