06/02/2010
Ano 13 - Número 670


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




 

 O “CASO” ERNESTO CANOZZI



 


Recebi a visita de Clésio Fermiano Júnior e Liliane Ribeiro e Ribeiro, formandos em jornalismo pela Faculdade Estácio de Sá, de Florianópolis. A dupla realizou um vídeo, como trabalho de conclusão de curso, denominado “Crispim Mira e o Artigo da Morte”, em que pesquisou a fundo os antecedentes e as circunstâncias do assassinato daquele jornalista, em 1927, em conseqüência de ferimento na boca, provocado por um tiro. Vinha o jornalista denunciando irregularidades que aconteciam na Comissão de Melhoramentos do Porto, na capital do Estado, quando a redação de seu jornal – a “Folha Nova” – foi invadida por cinco homens, a mando de Tito Corrêa Lopes, para “darem uma lição no jornalista.” A agressão foi muito violenta e o jornalista, ferido, foi recolhido ao Hospital de Caridade, onde sucumbiu no dia 4 de março. O atentado teve enorme repercussão em todo o Estado. Submetidos a julgamento, os acusados foram absolvidos e o processo criminal instaurado desapareceu dos arquivos, embora exista o acórdão nele proferido. Os formandos, autores do vídeo, revelaram-se pesquisadores sérios e diligentes, rebuscando todas as fontes possíveis para bem esclarecer o assunto e estavam informados de inúmeros detalhes. Desejavam um depoimento meu a respeito de alguns aspectos e que foi gravado naquela ocasião.

O fato me trouxe à memória o chamado “caso” Ernesto Canozzi, de que Crispim Mira foi o grande repórter e sobre o qual escreveu uma interessante narrativa. Foi um acontecimento de intensa repercussão em Lages e na região, embora seja lembrado apenas por pessoas mais antigas e seja em geral desconhecido.

Mira fez essa narrativa verídica, com acentuado sabor jornalístico, no livro denominado “Crimes e Aventuras dos Irmãos Brocato”, publicada em primeira edição em 1917, depois de ter aparecido como folhetim no jornal “Folha do Commercio”, de Florianópolis,do qual o autor foi fundador e redator. Em 1978 a Associação Catarinense de Medicina publicou nova edição, com desenho de capa de autoria do pintor Ado Beck, retratando Lages no início do século passado e precedida de longa introdução de Carlos Gomes de Oliveira. A introdução reconstitui a época em que Mira viveu, contém interessantes elementos biográficos, aborda as posições por ele assumidas em questões de destaque e enfrenta os problemas criminológicos que os fatos barrados sugerem. Trata-se, sem dúvida, de ensaio importante sobre o autor e a obra, embora seja muito lacônico no relato de seu assassinato, silenciando sobre nomes e fatos que hoje pertencem à História e que ao pesquisador não é lícito esconder. As informações do ensaísta, com certeza conhecedor dos fatos em minúcias, seriam fundamentais para o perfeito conhecimento dos fatos como deveras aconteceram. Mas ele preferiu silenciar e as informações omitidas são peças que faltam no quadro de extrema violência em que perdeu a vida o bravo jornalista catarinense.

“Crimes e Aventuras dos Irmãos Brocato” relata com detalhes a trajetória dos sicilianos Thomaz e Domingos Brocato, pontilhada mais de crimes que de aventuras, desde a terra de origem, registrando seus passos em Buenos Aires, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e Caxias do Sul, até o trágico desfecho na cidade de Lages. A narrativa, na verdade longa reportagem, revela extensa pesquisa, valendo-se o autor dos depoimentos de pessoas conhecedoras do assunto, do exame de processos judiciais, das páginas de um inacreditável diário mantido por Domingos e de outras fontes. Ao longo dessas páginas vai transmitindo as suas convicções na existência do criminoso nato, acatando assim os postulados da Escola Positiva, ainda muito prestigiada na época em que escreveu.

A narrativa busca reconstituir o homicídio de que foi vítima Ernesto Canozzi, caixeiro-viajante gaúcho, pessoa muito relacionada e estimada na região serrana, provocando grande revolta de quantos o conheciam. Apesar da ostensiva posição de Mira contra os irmãos italianos, apontando-os como os autores do crime, não posso esconder a dúvida que me assaltou durante a leitura do livro, com relação à autoria do delito, tão frágeis e inconsistentes me pareceram os indícios com base nos quais foram acusados. Nem a prolongada sentença de pronúncia logrou afastar as incertezas, o que só veio a ocorrer no final do livro, - como o autor habilmente desejava, - ante a cabal confissão judicial de Domingos. É verdade que a população jamais alimentou dúvida sobre a autoria do crime, atribuída sem vacilações aos irmãos italianos, mas o clamor popular e a vox populi nunca foram elementos seguros de certeza, como registra com freqüência a crônica judiciária. Por outro lado, os motivos que levaram ao crime parece que não ficaram bem claros.

É um livro interessante, embora escrito sem a preocupação de fazer literatura, e que desvenda aspectos curiosos de nossa maneira de ser, a boa-fé e a hospitalidade de nossa gente serrana, sempre pronta a acolher os que buscam aquelas paragens para viver. É inacreditável a audácia com que os dois charlatões lá se instalaram com a intenção de enriquecer a qualquer custo. Thomaz se dizia médico, clinicando com liberdade, chegando mesmo a realizar cirurgias e a participar de reuniões e debates com os “colegas”, enquanto Domingos fazia crer que era agrônomo, e assim viveram por muito tempo. Thomaz chegou mesmo a grangear renome profissional na região. É interessante observar que em outras cidades serranas alguns italianos exerciam a medicina sem habilitação, alegando que haviam se formado na Itália.

Escrito às pressas, para ser publicado em folhetim, como vem acentuado na primeira edição, e por um jornalista assoberbado pela lida profissional, “Crimes e Aventuras dos Irmãos Brocato” não mereceu o tratamento adequado que o caso relatado mereceria. Embora tenha despertado interesse e permaneça como uma história curiosa, a obra ficou assim como novela policial desperdiçada – o continente não correspondeu ao conteúdo. Mas vale como retrato de um fato que chocou a região, mostrando a incrível coragem desses irmãos que buscavam o sucesso financeiro, ainda que arrombando portas e não recuando nem mesmo diante do homicídio. A população, indignada, chorou a perda da infeliz vítima.

Crispim Mira, segundo a bibliografia que consegui levantar, produziu 18 obras, publicadas em volumes, sendo 14 sobre temas variados e 4 ensaios jurídicos, uma vez que também foi advogado provisionado. Avulta dentre elas o livro “Terra Catharinense”, publicado em 1920, verdadeiro compêndio sobre nosso Estado e que acaba de ser publicado em nova edição. Esse livro mereceu dois comentários de Monteiro Lobato, o mais acatado crítico na época de seu aparecimento. Recheados de elogios: “Os Tangarás” e “Dramas da Crueldade”, hoje estão reunidos no volume “A Onda Verde” de suas Obras Completas.

Homem culto e ligado às coisas de seu tempo, o jornalista abordou em livros assuntos muito diversos, a exemplo de “O Município de Joinville – Notas Ligeiras”, “O Perigo Alemão”, “Santa Catarina-Paraná – Impostos Interestaduais”, “A Mediação do Presidente da República”, “Os Alemães no Brasil”, “O Soldado Brasileiro e a Honra das Nações” e “Acorda Brasil”, entre outros. Neste último, em exclamação enfática, escreveu: “Senão soubermos nos fazer uma nação forte, pelo caráter, pelo trabalho e pela justiça, pouco teremos que esperar do futuro.” Era um apelo em favor do trabalho, da produção e do aperfeiçoamento.

Segundo depoimentos, Mira falava bem e foi um palestrante de mérito. Como era praxe na época, publicou em opúsculos pelo menos quatro trabalhos jurídicos: “Ação de Manutenção”, “Ação de Indenização”, “Hábeas-corpus” e “Suspeição.” Em todos eles os textos revelam o advogado hábil e preparado, senhor do assunto abordado e com grande capacidade de argumentação.

Muito ainda existe a ser pesquisado e talvez descoberto sobre Crispim Mira, sua vida e sua obra. Foi um jornalista inovador e corajoso, acima de tudo independente, muito diferente dos que exerciam naqueles tempos um jornalismo cinzento, quase sempre em benefício dos partidos que mantinham ou dominavam os periódicos. É um nome que merece ser lembrado e espero que o vídeo dos jovens jornalistas contribua para isso.



(06 de fevereiro/2010)
CooJornal no 670


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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