23/01/2010
Ano 13 - Número 668


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




 

SERGIPANOS NO PAÍS GRAPIÚNA


 


Para
Aluysio Mendonça Sampaio, in memoriam
Manoel Cardoso
Santo Souza
Wagner Ribeiro
Ilma Fontes
Ítalo Cardoso Fiscina
bons amigos sergipanos

 

Integrando o ciclo cacaureiro, iniciado com “Cacau” e seguido por “Terras do Sem Fim”, “São Jorge dos Ilhéus” e “Gabriela, Cravo e Canela”, o romance “Tocaia Grande”, de Jorge Amado, é um dos pontos mais elevados de sua obra romancística. Segundo Antônio Houaiss, esse romance denso e volumoso é “sua obra de mestre e por excelência crescente.” E de fato, neste livro, escrito de déu em déu, segundo o autor, ele se revela em sua plena maturidade, escrevendo com a liberdade própria de quem dominou a técnica, exercitando a imaginação, a criatividade sem limites, as experimentações e o humor como nunca o fizera antes.

Mesmo sendo obra de ficção, “Tocaia Grande” contém um fundo de verdade histórica, embora não seja um romance histórico no rigor da palavra.  O próprio autor sugere isso em trecho de suas memórias transcrito no intróito (p. VII). Ele retrata a luta de um resumido grupo de pessoas para criar uma cidade na zona do cacau, no sul da Bahia, desde seu aparecimento, marcado pela violenta tocaia que lhe deu nome e acabou com a guerra pela posse da terra entre os coronéis que dominavam a região, narrando seus avanços e tropeços, vitórias e derrotas, não faltando a enchente que quase tudo destruiu, a febre sem nome que matava até macaco, aumentando num repente a população do campo santo e, por fim, a chegada da fé e da lei, acompanhadas da violência e do obscurantismo, assumindo as rédeas da povoação depois que tudo havia sido implantado com extraordinário esforço e coragem. É uma história em tudo semelhante ao que aconteceu – mutatis mutandis – no surgimento de cidades em regiões canavieiras, cafeeiras ou ervateiras em diferentes pontos do país. A luta ingente de figuras anônimas, lideradas por personagens como o “turco” Fadul Abdala, o “seu” Fadu, o imponente negro Castor Abduim da Assunção, vulto Tição, misto de ferreiro e feiticeiro, a esquelética Siá Jacinta Coroca, ex-mulher-dama e que depois assumiu o conceituado ofício de parteira, por motivo de pura força maior, e “segurou” incontáveis crianças, o capitão Natário da Fonseca e o coronel Boaventura Andrade, ligados pela confiança, a amizade e a gratidão pelos serviços prestados, os dois maiorais, aquele do povoado e este da região, e que tudo perdem quando são atacados sem piedade em nome da ordem e da moralidade que, na verdade, esconde a cobiça e a ambição dos poderosos. Tudo por artimanha da política e da justiça, de mãos dadas, porque “assunto mais traiçoeiro do que a política só mesmo a justiça” – como ponderava o coronel (p. 104).

Aninhada no vale do rio de águas límpidas e ricas em pescado, Tocaia Grande começou como simples ponto e pernoite de tropeiros de burros e cargueiros de cacau, um lugar perdido na mata e isolado do mundo. O panorama bonito atraía à primeira vista e ali Natário da Fonseca ergueria a morada definitiva, no alto da colina, qual um Pinheiro Machado provinciano se instalando em seu Morro da Graça. Isso depois que levantou o dedo do gatilho, encerrando a jagunçagem, quando subia pelos ares a fumaça da bem sucedida tocaia. Em troca, como recompensa, recebeu a patente de capitão e um trato de terras suficiente para lhe dar a alforria de todo e qualquer patrão. Além de sua casa, foram surgindo construções: o armazém do “turco”, a ferraria de Tição, o barracão para pernoite dos viajeiros, o depósito de cacau seco, casebres de taipa e de palha a se espalharem pelas ruas da frente e de trás. Ali vivia um povo pobre, sem maiores ambições, tranqüilo e amigo. Um por todos e todos por um, ajudavam-se como podiam e viviam em paz. Amavam, sofriam, adoeciam, nasciam e morriam – como em toda parte. Festejavam São João, realizavam as cheganças comandadas por Coroca, divertiam-se em bailes, dançarás, reisados, festas e quadrilhas pontuadas por Tição. Deram início à feira popular. local de encontros, namoros e converseios. Mas não havia igreja e padre, nem cartório e juiz de paz, mesmo porque dispensáveis. Os casais se ajuntavam, os nascidos se batizavam em casa, os mortos eram encomendados por experientes rezadeiras sem necessidade de papel algum. E o arruado lamacento virou povoado, depois arraial e vila, e um dia seria cidade. Aos olhos da lei e dos padres, porém, era a “cidadela do pecado e o couto dos bandidos” (p. 487). E isso foi sua tragédia e perdição.

Mas vai que um dia, quando o capitão Natário da Fonseca rumava para a Fazenda da Atalaia, encontrou uma família de retirantes. Aí tem início a saga dos sergipanos no país grapiúna.

Esqueléticos e famintos, caminham sem rumo pela mata inceira. Trazem nas faces as marcas do infortúnio e os sinais do desespero. Penalizado, o antigo jagunço sofrena a mula e puxa prosa.

- Sergipanos? – indaga.

- Inhô, sim! – responde o mais idoso.

- Uma família só?

- Inhô, sim! Tudo é parente.

- Tão vindo de onde?

- Tamos chegando de perto de Maroim. Mecê já ouviu falar? (p. 214).

São filhos de Sergipe Del Rey que trabalhavam às meias e foram expulsos da terra porque o patrão necessitava de espaço para o gado e a cana. Toando ao léu, saíram pelo mundo em busca de algo que parecia impossível e vão bater no sul da Bahia, onde os frutos amarelos brilhavam como o ouro que valiam. Tocaia Grande carecia de braços e Natário para lá os endereçou. Sergipano como eles, nascido e criado em Propriá, seguiu satisfeito em sua jornada solitária.

Orientados pelo “turco” Fadul, os retirantes se instalam em terras para lá do rio, devolutas, sem dono e ocupação. Mourejando no cabo da foice e do machado, abrem clareira no matagal virgem e iniciam as plantações: mandioca, milho, feijão, hortaliças. Muito em breve Tocaia Grande consumiria o alimento de seu próprio chão. Erguem a casa de   farinha, o  rancho tosco onde se abrigam da intempérie e caem no serviço duro e sem trégua. Criam porcos, cabras, galinhas. São hábeis no manuseio das ferramentas. Em pouco se impõem pela seriedade, caráter, espírito comunitário. O embrião da primeira feira livre, onde expunham seus produtos e animais domésticos, trazidos em canoa do outro lado do rio, foi de sua iniciativa. Coroca, a primeira parteira, era da família. Também o pontilhão sobre o rio, construído em madeira-de-lei, e que resistiu à maior enchente, foi obra deles.

- Gente trabalhadeira! – era a voz geral.

Em breve outros sergipanos começam a chegar. Estes provêm de Estância, terra de Gilberto Amado e do próprio coronel Boaventura, desembarcados em Ilhéus. E os sergipanos decididos contribuem em várias frentes, produzindo de um tudo e aumentando a população, que as estancianas são de bom parir (p. 341). A vila prospera, atraindo o olho gordo dos ambiciosos e malandros. Trabalhando sem cansaço, buscando diversão nas coisas simples, vibrando com as conquistas e sofrendo nas derrotas, eles de integram à comunidade nascente. Com ela padecem as doenças, submergem nas enchentes, vivem a angústia das crises e também morrem nos ataques violentos. Mas sua marca fica registrada para sempre e nada a apagará da história quando Tocaia Grande, depois de virada a face obscura, exibir a face luminosa e se tornar a orgulhosa cidade de Irisópolis, com igreja, juiz, vigário, intendente e até clube literário.  



(23 de janeiro/2010)
CooJornal no 668


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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