24/10/2009
Ano 12 - Número 655


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




CANUDOS VISTO DE PERTO



 

Homenagem a Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”,
no ano   do centenário de seu silêncio.


Como já escrevi sobre Canudos numa visão moderna, analisando o livro de Vargas Llosa (*), e Canudos visto de longe, comentando a obra de Sándor Márai (**), explica-se o título deste trabalho: abordo aqui o livro de Frederico Pernambucano de Mello intitulado “Que foi a guerra total de Canudos” (Stahli Editora – Recife/Zurich – 1997), um dos mais corajosos e completos ensaios a respeito do movimento messiânico liderado por Antônio Vicente Mendes Maciel (1830/1897), o Bom Jesus Conselheiro, existente na vasta bibliografia sobre esse tema da maior complexidade e por isso quase sempre abordado de forma incompleta. O livro, de excelente feição gráfica, enriquecido por fotografias autênticas, reproduzidas das originais, e mapas ilustrativos, padece os efeitos de uma distribuição deficiente, o que é lamentável, e só obtive um exemplar em visita à livraria da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Talvez esse fato tenha contribuído para que não surgissem na imprensa abordagens na quantidade merecida pela obra.

NOVOS ASPECTOS

O livro repisa os fatos históricos já conhecidos do episódio com rara segurança, mas também “revela aspectos novos, difíceis de obter nesta altura do tempo”, como afirma, com razão, a Editora. Para tanto, o autor não apenas percorreu a imensa bibliografia sobre o assunto, como mergulhou num mar de documentos e informações, além de visitar Canudos e seus arredores com freqüência para bem observar detalhes e sentir ele próprio o clima local, examinando o terreno, o rio Vaza-Barris e seu vale, a vegetação e tudo mais, conversando com as pessoas, inquirindo e investigando. Daí, portanto, a elaboração de um ensaio que focaliza Canudos de perto, refletindo no texto os resultados positivos das pesquisas in loco. Para completar, anote-se que o livro é bem escrito, em estilo elegante e de leitura agradável.

UMA OBRA EM CINCO PARTES

Dividido em cinco densas partes, o livro contém ainda um apêndice com informações a respeito dos homens e das armas da Guerra, além da íntegra do “Relatório Monte Marciano”, de 1895, fornecendo assim inúmeros detalhes importantes para o leitor interessado. Registra uma bibliografia com mais de 150 títulos, entre nacionais e estrangeiros, alguns deles muito raros, revelando o empenho do autor em bem fundamentar suas exposições e conclusões. Registra ainda uma dezena de depoimentos de personalidades que prestaram informações, ao vivo, sobre os acontecimentos e aspectos com eles relacionados. Essa amplitude de elementos informativos faz do livro, além de seu próprio texto, uma fonte inigualável para outras pesquisas que ele, porventura, possa inspirar.

O LONGO TRAÇO

A primeira parte, - “O longo traço ante bellum”, porventura a que exigiu mais conhecimento geral sobre o país e uma visão crítica de nosso passado histórico, procura descobrir as causas remotas que levariam àquela Guerra tão insólita quanto cruenta, travada nos sertões inóspitos da Bahia, e outros movimentos similares que pontilharam nossa história. Acentua o autor o desafio posto diante do colonizador, obrigado a vencer os mais ásperos obstáculos, como “vastidões estranhas a olhos e pés europeus, com o pensamento refugiado na idéia de um regresso tão breve quanto lhe permitisse a formação, a qualquer custo, de cabedal que o sustentasse pelo resto da vida na terra de origem, reintegrado finalmente à família. Tudo valia para fazer fortuna onde se estava apenas de passagem... Em qualquer caso, o sentido do provisório operava o efeito de truncar possíveis impulsos na direção do estabelecimento de relações de afeto com a terra...” (Pág. 32 – Grifos nossos).

Impossível descrever melhor o sentido que presidiu às relações colonizador/colônia, no primeiro ciclo econômico do país – o do pau-brasil. Essa forma de agir, como é natural, lançou raízes, instalando uma forma de exploração predatória, desumana e cruel, quer em relação às pessoas, aos índios e à natureza. Partindo daí, mostra ele como a cultura livresca e superficial de nossas elites, aliada ao desinteresse pelo que ocorria nos sertões e a influência jesuítica geram o clima de religiosidade exacerbada, promissor ao surgimento dos beatos de todos os tipos, entre eles o Conselheiro. Figuras que se gestaram num ambiente de abandono, violência, injustiça e religião mal amanhada, avultando aí os “corpos de penitentes.” (***) “No seio dessas confrarias – escreve o ensaísta – cultivavam-se exotismos como a autoflagelação institucionalizada e um despojamento que abolia a higiene corporal, levando o crente a se entregar à imundície mais repulsiva” (Pág. 52).

A inflação atormentando o povo, as terríveis secas periódicas, as explorações políticas, o banditismo, as revoltas - eis o cadinho, descrito em minúcias e largo fundamento pelo autor, para a entrada em cena de figuras carismáticas e de intenso apelo popular como o Padre Cícero Romão Batista, o Beato José Lourenço e outros beatos menores, pregadores e intérpretes dos livros sacros dos mais exóticos feitios. Assim também, creio que, de cangaceiros como Lampião e tantos outros, exercitando uma guerra de guerrilhas “entre nós apelidada, desde os primórdios da colonização, de “guerra brasílica”, “guerra volante” ou “guerra do mato” (Pág. 36), tornando-os quase invencíveis e por isso sagrados heróis populares. (****)

O ARRAIAL E SEU CHEFE

Na segunda parte o autor aproxima o foco e analisa “O arraial e seu conselheiro.”  Abre o capítulo com o depoimento insofismável do tenente-coronel José de Siqueira Menezes, assim expresso: “Canudos não é, como muita gente boa supõe, um pequeno núcleo de população que um simples maníaco reuniu em torno de si para fins religiosos. O contrário disso é que deve se julgar” (Pág. 67).

Com esse espírito investigativo e despido de preconceitos, busca então o autor penetrar a fundo na realidade e reconstituir a vida dentro do aguerrido arraial e traçar um retrato justo do Conselheiro. Começa mostrando que em Canudos havia gente de todo tipo, os “náufragos da vida” de que falava o Padre Cícero, podendo ser encarado também como uma espécie de quilombo, dada a porcentagem negra da população. Não se esqueça tampouco a presença dos cearenses, tangidos pelas secas ou atraídos pelo chefe, “menos pela quantidade de seus integrantes que pelo significado da contribuição para o erguimento da estrutura de domínio presente no projeto teocrático do Conselheiro” (Pág. 87).

Contrariando um tipo de cultura imposto pela vida na caatinga, onde prevalecia o individual sobre o coletivo e a independência pessoal acima de tudo, os moradores do arraial se submetem a um novo sistema organizado à semelhança de um socialismo tosco onde o interesse de todos predominava. E para surpresa geral, o sistema funcionou. As atribuições se definiam com precisão e a ordem imperava; todos abdicavam de forma tácita de parcela de sua liberdade em benefício comum. Todos se entregavam “a um projeto alternativo de vida comunitária” (Pág. 88).

FIGURAS DESTACADAS

Assinala o ensaísta a presença de algumas figuras que se destacaram antes e durante os acontecimentos, como a Pimpona, Antônio Vilanova, o Norberto das Baixas, Joaquim Macambira, Pajeú, José Venâncio, o cearense Feitosa, João Abade etc. (****) Faz aí interessantes considerações sobre a guerra de guerrilhas que infernizava os militares, a busca da invisibilidade (“os jagunços vestem-se de folhas para serem confundidos com o mato...”), o isolamento que permitiu a conservação de formas primitivas de vida social, fazendo “da sociedade sertaneja uma espécie de quadro arqueológico da sociedade brasileira” (Pág. 81). Relevantes são ainda suas observações sobre a linguagem sertaneja. O isolamento no semideserto da caatinga nordestina, como na vastidão das fazendas aqui do Sul, manteve em uso vocábulos abandonados em outras regiões do país, levando observadores apressados a afirmarem que tais falas estão erradas. Demonstra, com cerrada argumentação, que esse conservadorismo manteve em uso a linguagem do Século XVI, como também o afirmou Câmara Cascudo: “O sertanejo não fala errado. Fala diferente de nós, apenas. Sua prosódia, construção gramatical e vocabulário não são atuais nem faltos de lógica. O sertanejo usa, em proporção séria, o português do Século XVI, da era do descobrimento” (Pág. 100 – Nota 18). Observo, para concluir, que encontrei em Saramago diversos vocábulos considerados arcaicos, usados pelos campeiros catarinenses, e desconhecidos em outras regiões.

PERFIL DO CONSELHEIRO

Quanto ao Conselheiro, mostra o autor que não se tratava de um fanático e ignorante, como tantas vezes foi pintado. Invocando o depoimento do general Dantas Barreto, escreve o ensaísta: “Daí a conclusão de que o exército brasileiro não se bateu contra nenhum idiota, em Canudos, mas contra um místico de inteligência superior, capaz de levar seu povo a uma guerra total, vale dizer, a uma guerra protagonizada por homens, mulheres, velhos e meninos, na defesa de uma cidadela escolhida com perfeição...” (Pág. 83). Mais adiante: “Os republicanos mergulham em verdadeiro pânico, vendo que o Conselheiro não era o idiota que tantos julgavam. Um idiota não põe a correr três expedições policiais e duas militares, como se dera nos últimos anos” (Pág. 116).

Esse o verdadeiro Conselheiro, comandando de forma discreta o seu burgo, incrustado à margem do Vaza-Barris, e que se transformou, em quatro anos, na segunda cidade do Estado da Bahia.

O LITORAL E O SERTÃO

Com o expressivo título de “Choque de dois mundos”, a terceira parte aborda o confronto entre o litoral desenvolvido e o sertão abandonado, cada qual com sua cultura, incapazes de se compreenderem como integrantes da mesma pátria. Mais uma vez acolhe o depoimento do general Dantas Barreto, quase sempre esquecido pelos cronistas, quando descreve as peculiaridades sertanejas e as dificuldades que elas impõem ao desenrolar da luta. Reabilita e valoriza a palavra desse militar, mostrando quão isenta, confiável e serena ela é. Analisa a morte de Moreira César, as circunstâncias e a boataria que a envolveram, o comportamento do militar durante o conflito e o enorme impacto que seu desaparecimento causou à opinião pública de todo o País e, em conseqüência, o pânico que se instala nas forças legais. Começa então a nova composição de forças para enfrentar os rebeldes, sob o comando supremo do general Artur Oscar de Andrade Guimarães, reunindo cerca da terça parte de todo o exército nacional. Monta-se o cenário para uma incursão sem precedentes para varrer do mapa o fatídico arraial conselheirista.

ENSAIO SOCIOLÓGICO

A quarta parte – “Pelo Nordeste” – constitui um puro ensaio de sociologia. Aqui o autor descreve o entusiasmo cívico que acompanha os preparativos da nova expedição a correr pelas principais cidades da região, os temores de novos fracassos e o receio de que o Padre Cícero viesse a apoiar o Conselheiro. Mostra o clima de misticismo reinante naqueles sertões, relembrando o “milagre” do Juazeiro, com as hóstias sanguinolentas de Maria de Araújo, a pregação ininterrupta de outros beatos e os grandes redutos formados em torno de alguns deles, como Caldeirão, Pau-de-Colher e Pedra Bonita. E o alívio generalizado quando se confirma que o “Padim” se afastara do Juazeiro em cumprimento a decreto do Santo Ofício e não para reforçar a resistência de Canudos como se suspeitava. Seu apoio, naquele quadro de fanatismo, teria conseqüências trágicas e, por certo, alteraria a história de Canudos e sua guerra.

Esse o clima reinante em março e abril de 1897.

A ESCRITA DA DINAMITE

Na derradeira parte, a guerra de extermínio – “A escrita da dinamite.” Não poderia sobreviver o Estado dentro do Estado; urgia que fosse desmantelado e não restasse pedra sobre pedra. Nela o leitor descortina toda a truculência da guerra, com seus ataques e contra-ataques, investidas calculadas ou arriscadas, erros e acertos, as derrotas e a vitória final das forças legais com o esmagamento do “império” do Belo Monte, a 5 de outubro de 1897, quando ocorre o completo desmoronamento da resistência rebelde. Nesse meio tempo, as cenas de horror, as mortes de Pajeú e do próprio Conselheiro, as degolas em série de prisioneiros (“a gravata vermelha”), as cenas de extrema coragem e de abjeta covardia, os lances heróicos, as tocaias, os ataques de surpresa, as táticas guerreiras de ambos os lados.

Revela o autor, passo a passo, admirável domínio de temas militares, penetrando fundo na análise das táticas e técnicas, estratégias de combate, formação e desempenho das forças militares, características e qualidades do armamento usado, organização militar e outros tantos detalhes em geral só conhecidos na caserna. Discute detalhes do relevo e do posicionamento das tropas, seu abastecimento, os combates de maior importância, as quantidades de combatentes de lado a lado, ressaltando os sinais de modernidade presentes na campanha, por parte do exército. Assinala os pontos positivos de parte dos jagunços, derivados de uma inteligência intuitiva, como a invisibilidade, a eficácia das linhas de atiradores, a combinação de armas modernas e arcaicas, a adoção de ordem tática diluída, o ataque aos animais de tração, os tiros à distância, provocando danos ao acaso e o enervamento do inimigo, a exposição de corpos de inimigos ou partes deles em locais visíveis para abater o moral da soldadesca.

O FIM: INCÊNDIO E EXUMAÇÃO

Por fim, encerradas as hostilidades, incendiada a vila e varejada de ponta a ponta, é exumado o corpo do Conselheiro, decepada sua cabeça e levada à Bahia, onde o sábio Nina Rodrigues sobre ela se debruça em acurados estudos. “Para nova surpresa dos republicanos exaltados e de toda a nação, – escreve o ensaísta – não se consegue encontrar nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência.” Proclama, por fim, o extraordinário cientista: “É, pois, um crânio normal!” (Pág. 237).

Concluindo, é visível, diante do esboço demonstrado, ser impossível bem conhecer e melhor entender Canudos sem a leitura atenta deste livro modelar. Ele realça, além de tudo, a marca indelével deixada pela guerra em nossa história de violência e arbítrio, despertando uma pergunta deveras inquietante: teria sido necessário tudo o que se fez? Outros meios e modos poderiam, creio eu, evitar a carnificina que encharcou aqueles sertões com o sangue de tantos brasileiros, vítimas uns do abandono, da miséria e da ignorância, e outros da exaltação exacerbada dos que enxergavam em toda parte perigos para a pátria que o tempo implacável acabaria mostrando inexistentes. Como voltaria a ocorrer no País em tantas outras ocasiões posteriores.

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Notas:

(*) “Canudos numa visão moderna”, in “O Perto e o Longe”, Blumenau, Fundação Casa Dr. Blumenau, 1990, Vol. I, Pág. 5.

(**) “Canudos visto de longe”, in “Jornal Página 3”, Balneário Camboriú/SC, 22/02/03, Pág. 18, e “Literatura”, Brasília, Vol. 24, 2003, Pág. 47.

(***) O autor reproduz a impressionante foto do Beato da Cruz, de Juazeiro do Norte, contemporâneo de Canudos, carregando uma cruz, as orações a tiracolo, o gorro, a túnica e o cordeiro de Deus, ou seja, um cordeiro vivo, tangido por uma corda (Pág. 155).

(****) Todos estes personagens e outros mais estão biografados no Apêndice A (Os homens da guerra). O Apêndice B relaciona as armas usadas com suas características e o Apêndice C contém a íntegra do Relatório Monte Marciano (Pág. 257 a 295). 



(24 de outubro/2009)
CooJornal no 655


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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