19/09/2009
Ano 12 - Número 650


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




A ESCRAVIDÃO DE A A Z



 

Depois de trinta anos de pesquisas incansáveis e solitárias, enfrentando toda sorte de dificuldades, o cientista social Clóvis Moura (1925/2003) concluiu sua obra “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, publicada pela Editora da Universidade de S. Paulo (EDUSP), no final do ano passado, e que o autor não teve a alegria de ver em forma de volume impresso. É um trabalho único e pioneiro no Brasil, com 440 páginas, em tamanho grande, e com mais de 800 verbetes, em ordem alfabética, abrangendo os mais variados aspectos da escravidão negra no Brasil ao longo de quase quatro séculos. Trata-se, portanto, da escravidão de a a z, literalmente, como afirma a editora.

Para a realização de obra tão vasta e ambiciosa, teve o autor que mergulhar em infindáveis leituras dos mais diversos gêneros, desde a história, a sociologia, a literatura, memórias e biografias, cartas, documentos oficiais, legislação e outros, colhendo, anotando, comparando, investigando, duvidando e acreditando, sem abdicar jamais do senso crítico. Trabalho estafante de um intelectual arguto, disciplinado e independente que pensava com a própria cabeça, aceitando ou rejeitando conforme indicassem os elementos de convicção. Custa a crer que trabalho dessa envergadura fosse levado a cabo por uma única pessoa, mesmo contando com a colaboração espontânea da filha Soraya Silva Moura (p. 12). Como ele próprio confessa, a obra “significa um esforço individual quase heróico, se levarmos em consideração as condições de sua realização” (idem). Nessas mesmas palavras de apresentação, tão escassas e modestas ante a grandeza da realização, ele aponta as dificuldades encontradas, os bloqueios, a descrença e a indiferença de muitos, compensadas, por outro lado, pelo estímulo e o otimismo dos espíritos realizadores. É interessante notar que o autor se propunha tarefa ainda mais ambiciosa: o plano inicial abrangia também a escravidão indígena. A carência de elementos, porém, o levou a se fixar apenas na saga da negritude, fato que, convenhamos, já constitui empreendimento maiúsculo. Quando pôs mãos à obra, havia chegado à conclusão de que “sobre a escravidão clássica a bibliografia é abundante e conhecida, mas, pelo que nos informamos, nenhuma obra com características de dicionário existia em relação à escravidão colonial” (p. 11).

Agora, coroando tanto esforço, o livro aí está, colocando nas mãos do leitor um painel imenso do que constitui a mácula maior de nossa história – a servidão do elemento africano. Verbetes densos, recheados de informações, datas, bibliografia, sugestões, correntes, interpretações. Alguns são autênticas teses (como afirma a editora), outros constituem verdadeiras biografias, outros abordam fatos, documentos, rebeliões, repressão, aspectos econômicos, religiosos, sociais. Em suma, é um “inventário crítico” do que foi a escravidão entre nós, mostrando tanto o lado escravista como o escravizado, ou o direito e o avesso – como escreveu Borges Pereira (p. 10). Tudo reunido num só livro que o leitor pode manusear e carregar, substituindo com vantagem imensa biblioteca onde as respostas, com certeza, nem sempre seriam encontradas, ainda que exigindo longo tempo.

Num passeio vagaroso e sem plano, fui buscando os verbetes que me ocorreram e em nenhum deles o “Dicionário” falhou. Lá estão as grandes personalidades envolvidas com a escravidão, a favor ou contra, como Joaquim Nabuco, Castro Alves e Rui Barbosa. Não faltam figuras emblemáticas como o Aleijadinho, Chica da Silva e Zumbi, este biografado da forma mais completa que já encontrei. Locais de famosos quilombos, com sua geografia, como a célebre Serra da Barriga, onde já estive, e os quilombos dos diversos Estados, não faltando sequer o que se desenvolveu na Ilha de Santa Catarina. Só não encontrei referência a São João dos Pobres, hoje Matos Costa, onde foi morto esse capitão durante a Guerra do Contestado. Suspeito que esse local, em tempos remotos, tenha sido um pequeno quilombo, embora confesse que até agora nada encontrei que o confirme. Estão no livro, com suas descrições e registros, os terríveis instrumentos de tortura, desde os “anjinhos”, o “pelourinho”, o “tronco” e outros de dolorosa memória, assim como detalhes a respeito de alforria, crenças, alimentação, trabalho, detalhes (uso de sapatos, roupas etc.), comportamento dos escravos (fidelidade, ao patrão, fugas, expulsão para a África etc). Como escreveu o autor, podem ter ocorrido erros e omissões, o que é natural em obra desse porte. Nota-se, porém, que apesar de sua modéstia, transparece que ele sentia imenso orgulho de sua realização. Orgulho, aliás, mais que justificado.



(19 de setembro/2009)
CooJornal no 650


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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