01/08/2009
Ano 12 - Número 643


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




PERDAS DOLOROSAS



 

É nos seus textos que o escritor coloca o melhor de seu esforço e as maiores esperanças. São o resultado de incontáveis horas de solidão, privando-se de tudo, na luta árdua com as palavras para que elas digam com precisão o que o autor deseja, muito além de seu significado rotineiro ou trivial. Por tudo isso, a perda de um ou alguns textos é dolorosa como poucas. Essas observações me ocorreram ao ler, num dia destes, que Coelho Neto perdeu no bonde os originais completos de um romance. Sabendo-se como ele trabalhava com esmero suas obras, exigindo-se o máximo, é fácil imaginar o desespero que o acometeu diante do irreparável, fato que seus biógrafos relatam em minúcias. Escrito à mão, como acontecia na época, a perda foi definitiva daquele que poderia ter sido – quem sabe? – seu melhor romance.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway foi vítima de algo semelhante. Encontrando-se em Lausanne, como correspondente de guerra, pediu à esposa que levasse de Paris a valise onde guardava os originais de seus trabalhos literários mais importantes até então produzidos. Nela estavam os contos que havia escrito com tanto ardor em quatro anos de intenso trabalho. Deixando a valise por uns momentos, na Gare du Lyon, ela foi furtada e desapareceu por mistério. Todas as buscas foram inúteis e, segundo os biógrafos, Hemingway numa mais se recuperou da tragédia. Alternando fases de fúria e desespero, jamais conseguiu esquecer, acreditando-se mesmo que o fato deixou seqüelas que iriam contribuir para seus problemas psíquicos futuros. Segundo a esposa, “ele quase recorreu à cirurgia para esquecer...” Para os críticos, porém, a perda talvez fosse benéfica, ainda que dolorosa, obrigando-o a recomeçar do zero, agora mais maduro e com maior experiência. Os biógrafos Milt Machlin e Anthony Burgess relatam o acontecimento com detalhes (pp. 70 e 32). Como tudo que ocorre na existência do escritor, mau ou bom, tem efeito sobre sua obra, este último afirmou: “Para nos envolvermos com a literatura, primeiro precisamos nos envolver com a vida” (p. 116).

A vida, no entanto, é mestra em surpresas. Muitos anos depois, passando por Paris, hospedou-se no Hotel Ritz, “sua casa na França.” Foi então avisado pelo gerente de que dois pacotes com seu nome se encontravam à sua espera no sótão, desde 1928. Neles estavam numerosos originais, esboços, anotações e planos literários. Não se sabe ao certo se eram aqueles da valise furtada, mas é certo que deram margem a “Paris é uma festa”, um de seus melhores livros, espécie de autobiografia dos anos de aprendizado na Capital francesa, integrando a “geração perdida” de que falou Gertrude Stein.

Conta-se que Hemingway, antes de iniciar um escrito importante, gastava longos momentos descascando laranjas e olhando para o fogo com infinita paciência. Intrigado, um jornalista teria indagado se o escritor não estaria perdendo precioso tempo naquela atividade sem importância. “Estou preparando a minha alma para escrever – respondeu Hemingway, - como um pescador prepara seu material antes de sair ao mar. Se ele não fizer isto, e achar que só o peixe é importante, jamais irá conseguir coisa alguma.” Assim ele justificava a “perda” de tempo. Quem relatou o episódio foi Paulo Coelho, na extinta coluna de jornal intitulada “Maktub.”


 
(01 de agosto/2009)
CooJornal no 643


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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