13/06/2009
Ano 12 - Número 636


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




CABELOS NO PEITO E SONHOS NA CABEÇA



 

A razão pela qual certos autores caem em total esquecimento e outros são sempre lembrados é um mistério. Entre estes últimos está o americano Ernest Hemingway (1899/1961), cujos livros continuam sendo lidos, discutidos, estudados e filmados em todo o mundo. A imprensa mundial, inclusive a brasileira, tem se ocupado com freqüência desse escritor, dando-lhe grande destaque, em virtude da publicação de sua obra póstuma “Verdade ao Amanhecer”, memórias ficcionais, que a crítica mais moderna tem preferido denominar de autoficção, organizada por seu filho Patrick Hemingway e já lançada em tradução brasileira. Esses fatos me levaram a reler a biografia do escritor, feita pelo inglês Anthony Burgess, e uma das melhores existentes, além de reler também o romance “Ter e não ter”, do próprio Hemingway.

Esse romance, escrito antes da mudança do escritor para Cuba, obteve invulgar sucesso, apesar da extrema violência de certos episódios, reveladores, talvez, daquele “lado matador” da personalidade de Hemingway que sempre constituiu um enigma para os intérpretes. Como um homem de tal sensibilidade e de talento incomum era aficionado de touradas, brigas de galos, luta de box e sangrentas caçadas, é difícil de entender. As touradas, aliás, tinham em Pablo Picasso, o maior expoente da pintura moderna, outro fanático admirador. São contradições gritantes, mais freqüentes do que se imagina, revelando que mesmo os grandes gênios têm seu lado mesquinho e que o ser humano, por sofisticado que se torne, conserva algum barbarismo.

Este é o único romance de Hemingway ambientado nos Estados Unidos, seu país natal, ainda que a primeira parte se desenrole em Cuba e nos mares cubanos. Tantas são as visões e imagens cubanas que essa parte é um verdadeiro hino àquele país e, mais ainda, à cidade de Havana. O livro se abre com um retrato da Havana dos tempos de Batista, com os boêmios dormindo nas ruas, cansados de perambular pela cidade que foi o paraíso da vida noturna. Mas depois, embevecido pela beleza, o capitão Harry Morgan, seu idealizado alter-ego, afirmava: “Olhando para trás, pude ver Havana, resplandecente sob o sol da manhã.” Em outra passagem ele se refere ao “brilho de Havana”, sintetizando como a via, com seus sons, cheiros, flores, bares, restaurantes populares e gente do cais.

O romance, por um lado, retrata o herói que Hemingway sonhava ser e procurava encarnar, na pessoa do capitão Harry Morgan, lobo do mar, destemido piloto da lancha que amava como a uma mulher, durão, implacável na defesa própria e de sua família. Por outro lado, em trechos de visível memorialismo, já aparecem as preocupações psicóticas que acabariam voltando contra si próprio aquele “lado matador” através do suicídio. Um fundo de investimento deixado por sua mãe, o relatório que recebera a respeito de seu imposto sobre a renda, o que teria o fisco encontrado e o que iria escarafunchar, os impostos que poderia ter pago cinco anos atrás, o receio de sofrer lesões (Morgan perde um braço e no livro “Verdade ao Amanhecer” também há referência ao assunto), as referências ao suicídio em geral e do pai (pulando de um 42o andar sem qualquer ruflar de penas, como uma águia que cai) e o dele próprio, “previsível e inevitável, adiado por um período de semanas, senão de meses.” Claro que tudo isso é colocado na boca ou na cabeça de personagens, mas são uma síntese das obsessivas preocupações que o levariam à morte, como relatam os biógrafos.

Harry Morgan, homem de cabelos no peito e sonhos na cabeça, em que pese ter acabado mal, viveu um romance que o leitor nunca esquece, graças à inigualável mestria de um dos maiores escritores do século que passou. Talvez isso explique, pelo menos em parte, o fascínio que o mantém tão vivo.


 
(13 de junho/2009)
CooJornal no 636


Enéas Athanázio,
escritor catarinense, cidadão honorário do Piauí
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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