09/05/2009
Ano 12 - Número 631


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




FIGURAS DO PIAUÍ


 

Em seu livro “Redescobrindo o Brasil” (Editora Panda – S. Paulo – 2003), a repórter paulista Receba Kritsch registra os aspectos mais curiosos de sua caminhada solitária e corajosa por todo o Brasil, em 185 metros de texto, numa viagem que durou cerca de ano e meio. Percorreu mais de 50 mil quilômetros, o equivalente a pouco mais que uma volta no planeta, a maioria deles ao volante de carros. Mas também andou em todos os transportes possíveis, embrenhando-se nos lugares mais ermos e esquecidos do território nacional. Apesar dos relatos interessantes e aventurescos, das situações engraçadas e das peripécias vividas, das paisagens descritas e da forma hospitaleira com que sempre foi recebida, o livro deixa, ao final da leitura, o sabor algo amargo de um país em decadência, com o povo abandonado e entregue à própria sorte, lutando como pode pela sobrevivência e acreditando, apesar de tudo, num futuro melhor. É o retrato de um país espoliado em benefício de poucos e resultante da inépcia de tantos irresponsáveis que têm chegado ao poder nestes últimos tempos.

Dentre tantas terras percorridas, o Piauí é tratado pela autora com a maior simpatia e ocupa algumas das melhores páginas do livro. Ela não se cansa de ressaltar a amabilidade dos piauienses, a beleza de tantos lugares e a movimentada noite de Teresina. Acima de tudo, destaca de forma especial algumas figuras piauienses dignas de nota pelas suas atividades, modo de agir e de pensar. Diversas delas mereceram até capítulos inteiros, aqui comentadas porque é bem possível que não sejam sequer conhecidas pelos próprios piauienses em geral.

O primeiro deles é Samuel Dourado Guerra, morador da cidade de Curimatá, no sul do Estado. Esse pesquisador incansável dedicou a vida à composição de um dicionário diferente, a que denominou “Dicionário de Termos Especiais”, agrupando “em torno de palavras-chaves os mais variados termos derivados delas ou a elas relacionados.” Com 150 mil verbetes, datilografados em sete mil páginas, o livro ainda estava inédito quando a autora visitou o dicionarista, então com 86 anos de idade. Apesar das muitas promessas, não conseguiu publicar o trabalho, embora sem jamais perder a esperança, registrada em seu respectivo verbete como “temporizar, adiar, delongar, aguardar ocasião mais favorável ou propícia.” Vamos torcer para que o livro de Rebeca provoque o surgimento dessa ocasião propícia e o dicionário venha a lume.

Paulo Severiano dos Santos, por sua vez, encontrou a felicidade no Piauí, mais precisamente em Morro Cabeça no Tempo, também no sul. Depois de malograda experiência paulistana, onde catava frutas na feira com um carrinho-de-mão, mergulhou no vício das drogas e esteve a um passo da perdição total. Com esforço e ajuda de parentes, embrenhou-se no chão piauiense e ali trabalha na roça, pela qual se diz apaixonado, e sem a menor intenção de sair. Para completar a felicidade, arranjou uma namorada com quem pretende se casar na igreja e na lei. Forte, alegre e disposto, nem de longe aparenta um ex-viciado. O Piauí lhe fez bem ao corpo e à alma.

José Cardoso da Silva, mais conhecido como Zé Didor, e Hermínio Antonio da Silva também comparecem.O primeiro, morador de Campo Maior, formou um dos maiores museus privados do país, com cerca de 11 mil peças, inclusive os carrinhos de bebês das famosas irmãs gêmeas Zezé e Zuzu. Todos esses objetos, entre os quais há raridades e coisas bizarras, se esparramam pela casa e seus anexos, esperando alguma forma de ajuda para transformá-lo em verdadeiro museu. O segundo, habitante de Oeiras, a antiga capital, aplica tudo que ganha com sua aposentadoria em objetos os mais variados, inclusive carros antigos, muitos de valor duvidoso. Temeroso de que surja outro Collor com algum “curralito” à brasileira, julga mais seguro imobilizar o dinheiro, mesmo lotando os pátios da casa, porque poderá vendê-los quando necessitar. Ninguém poderá dizer que seus receios são infundados. Neste país tudo é possível, aliás, não apenas aqui: no momento em que escrevo Menem é o favorito na vizinha Argentina!


 
(09 de maio/2009)
CooJornal no 631


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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