07/03/2009
Ano 12 - Número 622


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




QUEM CONHECE O PIAUÍ?



 

O DESPERTAR

Nos meus dias de garoto ouvi muitas vezes a afirmação de que Santa Catarina era o Piauí do Sul. A frase continha evidente sentido pejorativo e preconceituoso e, com certeza, brotava de pessoas que não gostavam de Santa Catarina e também não gostavam do Piauí. É muito provável que nada soubessem a respeito deste último e que o Piauí para elas não fosse mais que um nome. Mas, como a afirmação parecesse espirituosa, repetiam como papagaios, inclusive na imprensa. Acontece que a malsinada frase teve em mim um efeito contrário e que considero benéfico; há males que vêm para bem – diz o povo. É que ela despertou meu interesse por aquele distante Estado e comecei a ler tudo que pilhava sobre ele e que não era muito. Aos poucos, colhendo dados daqui e dali, fui construindo uma imagem real do Piauí e descortinei um Estado interessante, com uma geografia, uma história e uma paisagem diferentes e, acima de tudo, com uma cultura admirável em que avultavam expoentes das artes e das ciências, entre os quais vários de renome nacional e cujas obras mereciam o aplauso da melhor crítica brasileira. E assim foi até que, por volta de 1970, fiz a primeira visita, nessa época ainda inédito em livro e sem conhecer ninguém. Excursão de turista. Voltei carregado de material sobre o Piauí, sua terra e sua gente, iniciando-se um intercâmbio que se intensificou cada vez mais e perdura até hoje. A frase maldosa produziu bons frutos.


ONDE FICA O PIAUÍ


Como Teresina, a capital, está situada no interior, não figura no roteiro comum das viagens turísticas ao Nordeste. Em geral elas se limitam a curtas visitas às capitais litorâneas, passando de Fortaleza a São Luís, sem conhecer a chamada “cidade verde”, às margens do rio Parnaíba, volumoso e longo curso d’água que foi fundamental na história do Estado. Teresina é a única capital nordestina distanciada do litoral.

O Nordeste brasileiro se divide em quatro regiões a partir do litoral, com características e climas próprios. A primeira é a zona da mata, situada na faixa litorânea; a segunda é o agreste, região semi-árida; a terceira é o sertão, região quase desértica, pelo menos nos longos períodos de estiagem, e a última é o meio-norte, intermediária com a Amazônia. Enquanto que, para nós, aqui do Sul, sertão é a mata fechada, a floresta inceira e erma, no Nordeste é a quase total ausência de vegetação.

O Estado do Piauí, em virtude de sua posição geográfica, está em sua maior parte dentro do sertão. Piauí e Maranhão formam o que se chama o Meio-Norte, já possuindo regiões com características amazônicas, fazendo a transição. Com o formato aproximado de uma bota, o território piauiense está encravado entre o Ceará e o Maranhão e tem exíguo litoral, ao contrário de seus vizinhos. Sua primeira capital foi a cidade histórica de Oeiras, no sul, depois transferida para Teresina, uma das poucas cidades pré-traçadas do país, como Goiânia, Belo Horizonte e Brasília. Muito arborizada, ficou conhecida como “cidade verde”, defendendo-se assim do intenso calor que predomina na região. O Piauí foi o único Estado brasileiro povoado do interior para o litoral, ou seja, do sul para o norte, configurando-se em conseqüência uma história singular, refletindo-se também na formação de seu povo. Embora estreito, o litoral piauiense conta com o porto de Luís Correia e com a importante cidade de Parnaíba. Na foz do rio está o célebre Delta do Parnaíba, um dos recantos mais bonitos do país.


O MAR INTERIOR

Com estreito litoral, o Piauí tem no rio Parnaíba o seu mar interior, partícipe indispensável de suas realizações. Nascido nas chapadas do sul, o rio percorre 1716 quilômetros, através de cachoeiras e curvas caprichosas, em busca do Atlântico, onde forma o Delta que sobrevoei por duas vezes. Divide o Piauí do Maranhão, em toda a divisa a oeste, e banha Teresina, em frente à qual, no lado maranhense, está a cidade de Timon. Navegável em quase metade de seu curso, o Parnaíba foi importante meio de penetração e transporte na colonização do Estado. Nele navegavam as pesadas barcas impelidas pelas varas manejadas por “vareiros” que as levavam rio acima, com a força dos braços, até o destino. Exigia grande perícia para não encalhar nos numerosos bancos de areia – as “coroas”, no dizer do povo, - que afloram em muitos pontos do leito. Humberto e Campos, o celebrado Conselheiro XX, escreveu sentida crônicas relembrando os padecimentos dos “vareiros” que criavam no peito monstruosos calos, no local onde apoiavam as varas.

Entranhado na história e na vida piauienses, o Parnaíba é presença forte na literatura local. Nas obras dos romancistas Assis Brasil e O. G. Rego de Carvalho ele aparece como elemento destacado no cenário onde se movimentam os personagens. Outros autores e poetas lhe dedicaram incontáveis páginas de boa literatura. Foi, porém, Da Costa e Silva, o maior poeta piauiense e um dos grandes do país, que o consagrou de forma indelével no célebre soneto “Saudade”, batizando-o para sempre de “Velho Monge”:

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoas sobre a serra...

Saudade! O Parnaíba – “Velho Monge”
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...


Nascido em Amarante, importante cidade do sul do Estado, o poeta se refere à célebre montanha que se avista na outra margem do rio. “Saudade” se transformou numa espécie de hino e caiu na boca do povo. Não existe piauiense letrado que não o conheça.


ALGUNS EXPOENTES

O Piauí tem uma longa tradição cultural. Teresina mantém efervescente atividade no campo da cultura em geral e das letras em particular. A Academia Piauiense de Letras, que completou 90 anos em janeiro, é das mais ativas do país, mantendo sempre um clima liberal propício à mais ampla discussão. Também realizador é o Conselho Estadual de Cultura, cuja revista “Presença” é das melhores. Muitos piauienses obtiveram renome nacional nas artes e nas ciências.

Entre seus múltiplos expoentes, muitos merecem ser lembrados pelo talento e pela qualidade da obra produzida. Recordemos antes os que já “passaram para o outro lado do mistério.” O primeiro deles, sem dúvida, é o referido Da Costa e Silva, o maior poeta piauiense e um dos maiores do país. Clóvis Moura, sociólogo, historiador e poeta, mestre da negritude, também nascido em Amarante, e que foi meu dileto amigo. A. Tito Filho, historiador, incansável agitador cultural, presidente por longos anos da APL, foi o responsável pela minha aproximação com o Piauí. H. Dobal, grande poeta, louvado pela melhor crítica, há pouco falecido. José Lopes dos Santos, também meu amigo, jornalista, advogado e escritor, figura hospitaleira e simpática. José Expedito Rego, ficcionista, meu correspondente por longos anos. J. P. de Lima Cordão, romancista, bom amigo, sempre presente nas minhas visitas a Teresina. O magistrado Sousa Neto, autor de importantes obras na área do Direito Penal e poeta. Magalhães da Costa e Fontes Ibiapina, ambos magistrados e ficcionistas, este último cultivando o regionalismo. O analista político Carlos Castelo Branco, o célebre Castelinho. Martins Napoleão, grande poeta, autor de copiosa obra. Mário Faustino, revelação na poesia da época, inovador, desaparecido muito cedo. E numerosos outros.

Os autores contemporâneos são muitos e praticam todos os gêneros literários. Manoel Paulo Nunes é destaque como crítico e animador cultural. Presidente do Conselho Estadual de Cultura, acadêmico, figura carismática e de forte presença no meio cultural. Herculano Moraes, historiador da literatura, poeta e jornalista, é ubíquo, está em tudo e em toda parte, atuante como poucos. Francisco Miguel de Moura, ficcionista e poeta, escritor ativo e destacado. Hardi Filho, poeta de mérito, William Palha Dias, romancista, cronista e historiador, Celso Barros Coelho, jurista e escritor, Kenard Kruel, jornalista e escritor, Benjamim Santos, biógrafo de Hemingway, Homero Castelo Branco, ficcionista e historiador, Dagoberto Carvalho Jr., especialista em Eça de Queiroz, Maria Nilza, ensaísta, Zózimo Tavares, jornalista e historiador, Oton Lustosa, romancista, Reginaldo Miranda, historiador jovem e de intensa produção, Elmar Carvalho, poeta, Felipe Mendes, economista, estudiosos dos problemas locais, Tobias Pinheiro, ex-presidente da Academia Carioca, Neto Sambaíba, poeta profissional, além de outros tantos.

Não podem ser esquecidos os nomes de Assis Brasil, ficcionista de grande renome, e O. G. Rego de Carvalho, autor de uma obra admirável e que foi considerado por alguns críticos como o melhor romancista do país.


ATRAÇÕES E CURIOSIDADES

Em Teresina, dois pontos, pelo menos, merecem destaque. O Museu do Piauí, no centro, possui admirável acervo, destacando-se o retrato de D. Pedro II, em tamanho natural, feito pelo nosso Victor Meireles. Nos arredores da cidade, o encontro das águas dos rios Parnaíba e Poti é um local agradável, onde existe um parque bem cuidado e acolhedor. Nas cercanias está a rua em que se estabelecem os artesãos. Vários prédios de grande beleza arquitetônica se destacam na área central da cidade: o Palácio de Karnak, sede do governo, a catedral, o teatro, o Clube dos Diários e outros.

No interior do Estado, destacam-se o Parque Nacional da Serra da Capivara (São Raimundo Nonato) e o Parque Nacional de 7 Cidades (Piripiri), ambos conhecidos em todo o país e merecedores de uma visita. No caminho para este último, destaca-se o Museu do Jenipapo, erigido no local da célebre batalha. Além disso, vale relembrar o Delta do Parnaíba, um dos panoramas mais bonitos do país. A natureza foi pródiga com o Piauí.

Na região sul, situam-se as cidades históricas de Amarante e Oeiras. Esta foi a primeira capital do Estado, é um centro cultural, histórico e arquitetônico. Amarante é uma cidade curiosa, destacando-se a avenida principal, preservada e arborizada com espécies regionais. A cidade de Pedro II é famosa pela qualidade de suas redes.

A região sul do Estado, conhecida como Gurguéia, vem alcançando intenso desenvolvimento econômico.

O piauiense é acolhedor e hospitaleiro. Ama sua terra com fervor, tanto que é dos brasileiros que menos emigra.

Por tudo isso e muito mais, o Piauí merece ser melhor conhecido pelos brasileiros.

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B. Camboriú, 14 de agosto de 2008.

      
 
(07 de março/2009)
CooJornal no 622


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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