21/11/2008
Ano 12 - Número 608


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




GILBERTO AMADO, POLÍTICO POR ACASO?



 

Minhas leituras de Gilberto Amado costumam deixar a impressão de que ele foi político por acaso. Seus escritos, em especial “Minha formação no Recife”, não revelam inclinação para alguma carreira desse tipo. Pelo contrário, são o retrato de um jovem que buscava se aprimorar nas coisas do espírito e amealhar uma cultura que lhe desse a visão clara do mundo em que vivia. A par disso, transparece aquela disposição invejável para viver a vida com toda a intensidade, sem desperdiçar momentos preciosos, “recheando os minutos” – como ele próprio dizia. Tenho a impressão de que a sugestão para seu ingresso na arena política se deveu ao pai, desde o dia em que “seu” Melk manifestou o desejo de ver o filho ocupando uma cadeira de deputado federal por Sergipe. Seria um desejo do pai orgulhoso do filho talentoso que tinha, e não deste, para quem a hipótese não havia entrado ainda em suas cogitações. Seja como for, o fato é que se elegeu não apenas deputado como também senador pelo Estado natal e se desincumbiu da missão com raro brilho no decurso de seus mandatos. Mesmo que, como representante de Estado pequeno, não pudesse exercer a influência que desejaria, no contexto político da República Velha, como também ocorria com parlamentares de outros pequenos Estados, sua presença foi marcante. Fez pronunciamentos modelares sobre os mais variados assuntos, sempre estudados e pensados, e foi diligente nas posições que ocupou na vida parlamentar. Essa impressão de que seu ingresso no mundo político foi acidental se reforça, a meu ver, pela maneira como abandonou qualquer atividade desse tipo após a Revolução de 1930 que lhe cassou o mandato de senador. Ao contrário de muitos outros que tudo fizeram para se manter na arena, ele próprio se declarava um “decaído” ou “carcomido” – como diziam os revolucionários vitoriosos – e tratou de buscar alternativas na vida. “Tendo dado adeus à República Velha – escreveu -, despedi-me também de toda esperança de tornar à política.” Tudo indica que deixou a política sem ressentimento mas também sem saudade, como transparece de seu belo livro “Presença na Política.” Naquela manhã nebulosa em que desembarcava do navio, retornando da Europa, e foi conduzido à Chefatura de Polícia, como delinqüente ou suspeito, cravou o ponto final na carreira parlamentar. E nisso foi feliz, caso contrário é bem provável que não encontrasse tempo para compor sua notável obra e nem se tornaria o internacionalista de renome em todo o mundo. Os eventos desse amargo dia estão narrados no livro “Depois da Política” (pp. 143/151).

Dentre seus pronunciamentos, dos mais lembrados e que obteve grande repercussão na época, é “Eleição e Representação”, mais tarde publicado em livro. Nele o orador analisou com acuidade certos aspectos da vida política nacional, alguns deles parecendo se perpetuar no tempo, tanto que continuam os mesmos, incólumes ao correr dos anos. “A palavra “partido” (político) – afirmava ele – tinha no Brasil a significação que precisei no meu livro... associação de indivíduos para a conquista e fruição do poder, só e só. Jamais partido nenhum no Brasil quis dizer agrupamento de homens, sob bandeira ideológica ou programa prático, para servir o interesse público geral.” (Presença na Política, pp. 37/38). Não me parece que algo tenha mudado. Salvo as exceções de praxe, os incontáveis partidos de hoje servem apenas de trampolim para os cargos eletivos e são tantas vezes abandonados num troca-troca tão absurdo que exigiu a intervenção da Justiça Eleitoral na tentativa de moralização desses maus costumes.

Em outra passagem, esta das mais conhecidas, referindo-se às eleições a bico de pena da República Velha, assegurou: “As eleições eram falsas mas a representação era verdadeira. As eleições não prestavam, mas os deputados e senadores eram os melhores que podíamos ter. O Brasil, de norte a sul, de leste a oeste, na sua originalidade, no seu pitoresco, nas suas mil tipicidades regionais, oferecia-se concentrado ali” (na relação nominal dos parlamentares da época) (Op. cit., pp. 83/85). Lembra ainda que inúmeras dessas figuras se destacavam pela qualidade intelectual e ética. Muitas vezes a representação formal através do voto secreto se torna uma representação falsa. Lembrem-se os casos dos “cacarecos” e “folclóricos”, às vezes eleitos com milhões de sufrágios secretos, carregando na legenda uma récua de inutilidades, e que na verdade não representam qualquer linha de pensamento e nem sequer têm noção do que deverão fazer. O vínculo entre o votante e o votado é que legitima a verdadeira representação.

Analisando, em ocasião posterior, as relações Brasil-Estados Unidos, busca uma explicação para o anti-americanismo que já nas primeiras décadas do século passado se avolumava em todo o mundo. Imaginava ele de início, como Joaquim Nabuco, que os dois países, em face de suas posições geográficas e características especiais, estavam fadados a “uma união, mesmo aliança profunda, de ordem material e moral, de modo a constituírem as duas grandes nações extensas em território um par de associados trabalhando juntos, em termos de igualdade, para a prosperidade comum e o welfare do continente” (Op. cit., p. 226). Depois, mais vivido e com experiência internacional, reviu essas idéias, inspirado pelos fatos correntes, e escreveu: “Os Estados Unidos, incapazes de conceber uma política em termos de política, isto é, de longo alcance e objetivos remotos, não nos distinguiram nem especificaram sua consideração a nosso respeito. Ao revés, insistem em nos confundir, em nos mesclar, em nos atirar nos braços que se abrem relutantemente para nós. Não pensam em nós como Brasil, mas como South America. Para eles não há diferença entre o Brasil e qualquer das repúblicas ao sul da Flórida... tudo é South America! (...) O mais obscuro dos indivíduos porfia por sua identificação, quer ser quem é, como nasceu, como foi batizado. José não quer ser João. Afonso não quer que lhe chamem Gaudêncio. José, por ter nascido numa parte do globo, não quer ser visto só pelo critério geográfico. Nascido em Portugal, José quer ser visto como um português e não como europeu; Giovanni quer ser italiano; Pierre é francês. (...) O brasileiro não é um “sul-americano”, é um brasileiro. Assim quer ser chamado. Insiste em que lhe chamem pelo nome. Os Estados Unidos parecem alimentar uma espécie de prazer em nos amalgamar, em nos empacotar sob o mesmo rótulo. Em nenhuma ocasião se pode obter em Nova Iorque, em São Francisco, no Texas, na Nova Inglaterra que o americano vincule nossa presença à imagem do Brasil. (...) Por todos esses motivos, se não se justificam totalmente, explica-se que para um único Eduardo Prado do começo da República, existam hoje, no Brasil, dezenas, centenas de Eduardos Prados, adversários dos Estados Unidos” (Op. cit., pp. 226/227). Referia-se, é claro, ao livro “A Ilusão Americana”, de grande repercussão.

Nem seria necessário, mas não me furto a fechar estas observações com este manifesto de amor ao Brasil, repetindo tantos outros, por ele formulados em diferentes ocasiões. “Meu amor pelo Brasil é místico, como todos sabem. A palavra pátria tem para mim significação religiosa. Entre as coisas sagradas continua o Brasil a ser a mais sagrada. Eu o quisera grande, não só de território, decente, limpo, inteligente e sensato, sabendo para onde ir, querendo ir mesmo, atestando-se corajosa e imensamente com o destino. Antecipava-lhe as dificuldades mas acreditava nas suas forças para saltar sobre elas” (Op. cit., p. 107). Relendo essas palavras, já idoso e cansado, ele sofria com os despautérios que aconteciam no Brasil, como de resto todos que amam esta pátria. Jamais, porém, deixou de amar esta terra. Suas palavras servem de alento e esperança.

Talvez político por obra do acaso, Gilberto Amado engrandeceu como poucos o Parlamento Nacional.


 
(21 de novembro/2008)
CooJornal no 608


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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