14/11/2008
Ano 12 - Número 607


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




EM DEFESA DE NHEÇU



 

Alegações finais

Egrégio Tribunal da História!

O cacique e pajé Nheçu, líder inconteste dos índios guaranis e outras tribos da margem oriental do rio Uruguai (gnoas, charruas, minuanos, patos etc), hoje a região missioneira do Rio Grande do Sul, vem merecendo, ao longo dos séculos, as mais severas acusações. Chamam-no de hipócrita, traidor, víbora, violento, traiçoeiro, vingativo, lascivo, bruxo, além de mandante de homicídios e tentativas.
Seriam justas essas acusações?

Só uma incursão no passado histórico e no mundo jurídico poderá responder com precisão. Vamos a ela!

Na área do Cerro Inhacurutum, o mais elevado daquelas cercanias, situado no atual município de Roque Gonzáles, Nheçu exercia seu poder político e religioso sobre considerável quantidade de indígenas, numa comunidade que constituía, segundo os historiadores, um grande povo, uma verdadeira nação, organizada e altiva. Na imensa região de campos e matos que dominava, o povo chefiado por ele dispunha de caça e pesca abundantes, frutas nativas em quantidade, águas cristalinas e liberdade para viver conforme seus usos e costumes, arraigados ao longo dos séculos. Nheçu “tinha poder incontestável sobre seu povo e caciques de tribos vizinhas porque era reconhecido unanimemente como o feiticeiro mais poderoso na margem oriental do rio Uruguai” – como depõe o historiador Sérgio Venturini, “expert” no assunto. Ali, sem maiores inquietações, vivia feliz um povo livre, em perfeita integração com o meio físico e sua cultura. Segundo o escritor Nelson Hoffmann, grande conhecedor dos assuntos daquela região, mapas antigos, do tempo dos jesuítas, a assinalavam como “Ñezú Retã”, que quer dizer “Terra de Nheçu.”

Desde o início do Século XVII, no entanto, notícias perturbadoras tiravam o sono da comunidade indígena e assombravam as suas noites. Elas diziam respeito à ação dos padres da Companhia de Jesus, que fundavam missões na outra margem do Uruguai, impondo crenças estranhas aos silvícolas e alterações drásticas no seu “modus vivendi.” E, de fato, não tardou para que eles cruzassem o rio, invadindo os territórios guaranis, sem licença ou autorização, e lançando as bases de suas missões, a começar por São Nicolau, considerada a “primeira querência gaúcha”, fundada pelo padre paraguaio Roque Gonzáles de Santa Cruz para a Coroa Espanhola, em 1626. Pelo Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha, aquelas terras pertenceriam a esta última, mas é claro que o elemento autóctone nem sequer foi considerado, como se não existisse. Atrás dele vieram outros padres, catequizando, batizando, casando, construindo cidades e igrejas, plantando cruzes e fundando reduções onde os índios antes livres e nômades eram aglomerados e tornados sedentários. Apesar da reação imediata de Nheçu e sua gente, a vida na região do Inhacurutum foi perturbada. Exigiam os padres, entre outras coisas, que fosse abolida a poligamia dos caciques e que os indígenas adotassem trajes à moda civilizada, cobrindo suas “vergonhas.” Exigiam que os gentios abandonassem sua fé, suas crenças, sua arte de curar, seus mitos e ritos, herdados dos ancestrais e que exercitavam em paz desde tempos imemoriais para abraçar uma fé complexa e que incutia a pesada idéia da culpa e do pecado. Uma violência física e psicológica sem precedentes.

Nheçu contemporiza, contando talvez com o insucesso dos padres, e simulando sua própria conversão. Mas o avanço dos estrangeiros é assustador, o número de convertidos é cada vez maior e as novas missões vão brotando entre as coxilhas onde ele antes imperava. Surgem Candelária do Caaçapamini (1627), Assunção do Ijuí (1628) e Todos os Santos do Caaró (1628), nada indicando que a invasão fosse detida; antes pelo contrário. O cacique-pajé tenta demover os seus, “desbatiza” as crianças, argumenta que os sacramentos ministrados pelos religiosos não surtiam efeito, prega em favor de suas tradições. É tudo inútil, os aldeamentos crescem, as torres e cruzes furam os céus, os orgulhosos guerreiros de ontem se tornam agricultores, mourejando no cabo da enxada, em benefício de um senhor desconhecido, suas crenças e valores são objeto de desprezo como algo condenável e abjeto. Tomado pelo desespero, Nheçu não vislumbra outro caminho e se decide pela reação virulenta, o único que lhe restava. “Com a intenção de terminar com a influência dos jesuítas junto à sua gente, - escreve Sérgio Venturini – Nheçu convocou uma assembléia de seu povo e caciques da redondeza. Afirmou que, para acabar com a influência da religião que vinha de longe, era preciso matar a todos os padres, queimar suas igrejas e destruir as cruzes que tinham levantado e as imagens que haviam trazido.” Pressentia que a tolerância implicaria na destruição de seu poder legítimo, de sua cultura e, mais ainda, na dizimação de seu povo – como de fato aconteceu. Seu instinto ancestral lhe dizia que se tratava de uma questão de sobrevivência. E estava coberto de razão, porque, para repetir os historiadores, “A aculturação destruiu a identidade indígena e aniquilou diversas culturas existentes no Brasil. Isolados nas missões, os índios viraram alvos ainda mais fáceis dos colonos, que conseguiam capturar tribos inteiras. Desde esta primeira etapa colonizadora, as populações indígenas vêm sendo aniquiladas.” É afirmação da equipe da “Nova Enciclopédia Brasileira Folha” (S. Paulo – 1996 – pág. 641). No alto do Inhacurutum, segundo o mesmo Venturini, corroborando tais palavras, em dois ranchos de chão batido, residem hoje duas famílias miseráveis de índios molambentos, trágicos remanescentes daquela civilização.

Em decorrência da decisão tomada, com o apoio da assembléia soberana e o parecer dos sábios da tribo, tiveram início os ataques. No dia 15 de novembro de 1628, no Caaró, são mortos os padres Afonso Rodrigues e Roque Gonzáles. Dois dias depois, em Assunção do Ijuí, é morto o padre João de Castilhos, o mais rigoroso e exigente de todos. Os índios também atacaram Candelária, com a intenção de matar o padre Pedro Romero, mas ele reagiu a cavalo e conseguiu se safar. Em São Nicolau, quando atacados, os padres fugiram para as matas e os índios convertidos defenderam a cidade. Esses sacerdotes, em muitos casos, tinham instrução militar. Tomados de ódio contra os invasores, é natural que os indígenas tenham praticado alguns excessos, como em todas as guerras.

Padre Roque Gonzáles, morto no Caaró, foi prostrado “por um golpe de macaná, desferido por Marangôa, no momento em que prendia o sino numa vara de cedro de dezessete metros, na nova redução de Caaró”, conforme salienta Sérgio Venturini. Esse detalhe é significativo se lembrarmos as lições dos antropólogos Orlando Villas Bôas e Darcy Ribeiro. Na simbologia indígena, por certo, o sino teria que ser silenciado. Caso bimbalhasse, com seu som metálico ecoando na campanha, estaria consumado o domínio estrangeiro sobre a região. “Assim como o símbolo é uma constante na vida de outros povos, - escreve o referido Villas Bôas, - da mesma forma o é na cultura do índio. De certa maneira, poderíamos dizer que o símbolo seria a concretização do abstrato, uma representação material do imaginado.”

A reação dos jesuítas foi desproporcional ao ataque sofrido, uma verdadeira guerra declarada contra os silvícolas, perecendo mais de uma centena deles só no primeiro embate. Lançaram índios contra índios, valendo-se inclusive da ajuda de elementos alheios ao conflito e usando uma tecnologia superior, com a qual não tinham como competir. Vencido, Nheçu fugiu, forçado a abandonar o Inhacurutum e o Pirapó, perecendo na condição de prisioneiro, segundo uns, ou engolido pelas águas acastanhadas do Uruguai, segundo outros. Os massacres de indígenas nunca mais cessaram, mesmo daqueles aldeados, inclusive pelos bandeirantes paulistas, levando muitos como escravos, até que a população autóctone virtualmente desapareceu. “Usados tanto pelos espanhóis como pelos portugueses nas sangrentas batalhas, os índios foram massacrados ao longo da ocupação portuguesa”, para citar mais uma vez o Prof. Venturini.

A reação dos padres assumiu o caráter de uma vingança explícita, perpetrada sem reservas, revelando incompreensão e autoritarismo inacreditáveis em homens dedicados à fé. No dia 15 de novembro de 1928, em solenidade alusiva ao tricentenário da morte de Roque Gonzáles, Monsenhor Estanislau Wolski, grande orador sacro, profere célebre discurso à sombra das imponentes ruínas de São Miguel das Missões. Embora de grande beleza, a peça oratória não deixa dúvida sobre o sentido de vingança da reação dos padres e do ódio votado ao cacique. Diz ele que Nheçu “continuava nas antigas superstições e feitiçarias”, que “continha peçonha de víbora exasperada”, considerando seus índios uns “verdugos”, “carrascos”, “conspiradores”... Parece consolar-se, no entanto, com o fato de que “Nicolau Nienguiru, morubixaba de São Nicolau, VINGOU a morte do fundador dos povos aquém do Uruguai, CASTIGOU os verdugos, PERSEGUIU os conspiradores.” Convenhamos que é uma linguagem no mínimo estranha na boca de um servo de Deus! (O sermão está transcrito na íntegra no precioso livro de Sérgio Venturini, págs. 38/46).

Não é demais lembrar que acontecia nessa época uma “globalização” semelhante à atual. As potências imperialistas, entre as quais Portugal e Espanha, incutiam a idéia de que era irreversível e inevitável, usando de todos os meios para realizá-la em benefício próprio, inclusive impondo seu culto pelo método do “crê ou morre.” A leitura dos cronistas da época revela a incrível semelhança dos discursos de então e de hoje, embora este seja mais sutil, ainda que igualmente mortífero para os mais carentes. Segundo o historiador Manuel Correia de Andrade, “somos daqueles que, ao analisar o processo de colonização, iniciado pelos portugueses e seguido por outros povos, desde o Século XV, admitem não ter havido descobertas, mas invasões (...); consideramos, porém, uma invasão quando ela é feita em territórios que já eram ocupados por povos desconhecidos ou pouco conhecidos, que lutaram, foram derrotados e tiveram que se submeter a um processo de transformação tanto étnica quanto cultural.” São palavras que parecem ter sido escritas para este caso.
Resumidos assim os fatos, reduzidos aos elementos essenciais, analisemos o comportamento de Nheçu nos episódios. A conclusão que se impõe, de qualquer ângulo de observação, é a de que agiu de forma legítima, jurídica e ética, não sendo exigível conduta diferente nas circunstâncias. Como chefe, comportou-se de maneira correta na defesa do povo e da cultura que lhe cabia preservar. Caso contrário, seriam a omissão e a covardia. Se não, vejamos.
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Sob o ponto de vista do Direito Internacional, os indígenas estavam amparados pelo “uti possidetis.” Segundo esse antiquíssimo princípio do “jus gentium”, “o estado de posse de uma região é reconhecido e passa a constituir um direito de propriedade.” A situação encontrada naquele momento histórico “se torna definitiva e firme: como possuís, ficareis possuindo”, conforme a própria etimologia dessa expressão latina. Muitos países, entre eles Portugal, Espanha e mesmo o Brasil invocaram esse princípio em demandas territoriais, embora nunca o reconhecessem em favor das nações indígenas, ainda que fossem organizadas, como foi o caso dos guaranis. Nesse sentido escreveu o historiador Odilon Nogueira de Matos: “...o Tratado de Madrid (1850), que se fundamentaria no princípio jurídico do “uti possidetis”, reconhecia como pertencente a Portugal a área então ocupada pela nova Capitania de Mato Grosso.” É um exemplo típico da adoção de dois pesos e duas medidas.

Exercendo posse mansa e pacífica naquela região, sem qualquer interrupção, herdada dos ancestrais, nunca contestada por quem quer que fosse, os índios haviam consolidado a propriedade desde tempos imemoriais. Tinham um governo instituído segundo suas tradições, exteriorizado na pessoa do cacique (executivo), de uma assembléia convocada em certas ocasiões (congresso) e algum sistema destinado aos julgamentos (judiciário). Eram, pois, uma nação organizada à sua maneira, com governo, povo e território, requisitos exigidos pela Ciência Política.

A alegação de que aquelas terras fossem “res nullius”, por serem habitadas por “selvagens”, não tem a menor procedência. Como ensina o renomado internacionalista Hildebrando Accioly, com base em sedimentado entendimento, só podem ser como tais considerados “os territórios que são habitados por tribos selvagens e não possuem autoridade ou organização de espécie alguma, por mais rudimentar que seja.”

Não era o caso desses valorosos índios.
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Sob o ponto de vista do Direito Penal, os indígenas agiram em legítima defesa. Ensina o Prof. Basileu Garcia, um dos mais acatados penalistas do século passado, que “a legítima defesa é uma justificativa que sempre existiu, desde as mais remotas legislações, entre os povos mais antigos. Todos os códigos penais a contemplam, visto que corresponde a uma necessidade imperiosa, a de resguardar-se o direito.” Em abono dessa afirmativa, cita imensa bibliografia de juristas e pesquisadores do Direito de todo o mundo. Embora os colonizadores não se preocupassem em pesquisar e registrar os princípios de Direito vigentes na sociedade indígena. conclui-se, como decorrência, que também a contemplavam em seus códigos consuetudinários, não-escritos, transmitidos pela tradição oral, numa comunidade ágrafa. Mesmo que, por absurdo que fosse, não a tivessem, seria irrelevante, porque a legítima defesa “est lex non scripta, sed nata lex”, como asseverou Cícero, na célebre oração “Pro Milone”, em eras nas quais nem as mais arrojadas imaginações suspeitavam da existência do Brasil. “Como direito natural, está conforme à natureza do homem e é reconhecido pela moral” – escreveu Salgado Martins.

Entre as teorias que fundamentam o instituto da legítima defesa, “uma das mais antigas é a que invoca o ‘instinto de conservação’: deve ser tolerada a defesa privada porque é expressão do inelutável instinto que impele o homem ‘ad se conservandum”, conforme o magistério de Nélson Hungria.

Ora, como se viu na exposição inaugural, os índios agiram em legítima defesa própria, de terceiros, da liberdade, da posse, da propriedade, da honra e da sua cultura. Cada um desses itens se inscreve com perfeição nas expressões “a direito seu ou de outrem” que, uma vez atacados, legitimam a reação (Código Penal, antes art. 21, agora art. 25). A palavra “direito”, no caso, tem sentido amplo, abrangendo tanto os materiais como os imateriais, uma vez que não existem direitos mais e menos protegidos.

Não resta dúvida de que a agressão sofrida pelos indígenas era atual e injusta. Sua reação, nas circunstâncias, foi moderada, exercida nos limites necessários à preservação dos direitos agredidos, enquanto que a resposta dos padres, como mostramos, foi infinitamente desproporcional. Impunha-se a necessidade de defesa contra o perigo concreto de uma agressão já iniciada e que perdurava de forma insuportável. Sobre esses aspectos coincidem as lições de Basileu Garcia, Salgado Martins e Nélson Hungria, além de outros luminares da Ciência Penal que poderiam ser invocados.

No entanto, na hipótese de rejeição da legítima defesa, o que só se admite “ad argumentandum”, seria invocável em favor dos índios o princípio da “inexigibilidade de outra conduta”, nascido na jurisprudência germânica, e do qual Aníbal Bruno e José Frederico Marques foram pioneiros e divulgadores entre nós. Com efeito, eis o que escreve o primeiro: “É a que o faz assentar na idéia da não exigibilidade de conduta diversa como causa de exculpação, idéia que deriva da concepção normativa da culpabilidade. Culpabilidade é reprovabilidade como afirma esse conceito. Mas essa reprovabilidade da ação do sujeito só procede quando dele se podia exigir, nas circunstâncias,comportamento diferente.” Em outras palavras, naquela situação histórica e ante a invasão desautorizada, não se poderia exigir dos índios conduta diversa daquela que tiveram. Em conseqüência, frente a esse salutar princípio, estariam isentos de dolo ou culpa pela ausência de qualquer reprovabilidade.
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Sob o ponto de vista do Direito Civil, os indígenas estariam, igualmente, amparados pela lei e pelo direito. Na qualidade de proprietários e posseiros daquelas terras, seus bens, frutos e produtos, poderiam reagir por todos os meios ao seu alcance a qualquer “turbação” ou “esbulho.”

A legislação vigente nos países que consagram o regime da propriedade privada garante o exercício da “defesa e desforço imediatos” ao titular de direitos dessa natureza que seja ameaçado ou impedido de exercê-los na plenitude. Assim acontece, v. g., na Alemanha, na Áustria, na França, na Espanha, na Suíça, na Argentina, no Peru e em Portugal, para lembrar os casos em que os dispositivos mais se assemelham ao nosso e entre si, segundo os comentaristas. Portugal e Espanha violavam abertamente, nas colônias, através de seus prepostos, aquilo que sua própria legislação estabelecia.

Nosso Código Civil, de 1917, consagra essa espécie de legítima defesa em seu art. 502, assim expresso: “O possuidor turbado, poderá manter-se, por sua própria força, contanto que o faça logo; o esbulhado poderá restituir-se, também, desde logo.” Não se tratava de novidade porque já constava das “Ordenações” e da “Consolidação das Leis Civis”, de Teixeira de Freitas. E nem poderia ser de outra forma em face do princípio básico de que a todo direito corresponde uma ação que o assegura. O novo Código Civil disciplina a hipótese no par. 1o. do art. 1210, com redação quase idêntica (Lei n. 10406, de 20 de janeiro de 2002).

Note-se que Nheçu resistiu desde logo à turbação e só passou aos atos de desforço quando ela se transformava em esbulho. Tomou a defensiva “logo”, como quer a lei. Lembre-se que essa legítima defesa, no âmbito civil, é mais ampla que no penal, permitindo a perseguição, em certos casos, e até intervalo entre ação e reação, conforme as circunstâncias, cabendo tal apreciação à prudência do juiz. Nesses pontos não divergem os intérpretes mais autorizados.

Não obstante, Nheçu e os seus foram vítimas de turbação e esbulho, praticados pela violência, de forma consciente e determinada, pagando com as próprias vidas e a dizimação de sua raça por habitarem uma terra que herdaram dos ancestrais e que ocupavam dês que o mundo é mundo.
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Sob o ponto de vista da Filosofia, tudo socorre os índios. Enquanto eles se pautavam pela ética, os invasores violentavam todos os princípios basilares da moral social. “A moral social trata dos deveres que nascem das relações entre o homem e seus semelhantes”, definiu-a o Prof. Estevão Cruz, mestre inesquecível de gerações de brasileiros, em seu célebre “Compêndio de Filosofia.”

Segundo suas lições, o exercício da legítima defesa é reconhecido e aprovado pela ética universal. “Em muitos casos é até um dever” – assevera ele. A prática da guerra, desde que defensiva, também encontra respaldo nos princípios da moral. Hugo Grócio, o genial jurisfilósofo, sustentava que “a guerra defensiva não só é lícita, mas é obrigação fazê-la; é lícita pelo preceito natural: ‘vim vi repellere licet’; e é obrigação fazê-la a quem tem a seu cargo defender a república.” Era o caso de Nheçu em sua condição de chefe daquela nação.

Quanto aos invasores, violentaram todos os princípios da ética e da moral. Não respeitaram a vida alheia, regra fundamental da moral, do direito e de qualquer religião. Não respeitaram a liberdade individual dos índios, reduzindo-os à condição de escravos ou recolhendo-os a reduções que atentavam contra seu secular “modus vivendi.” Não respeitaram a liberdade de pensamento dos indígenas, sua liberdade de culto, seu direito de propriedade e sua cultura como um todo. Em síntese, violaram todas as normas do capítulo filosófico sobre a ética.
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Concluindo, resta dizer que o cacique-pajé Nheçu e seus comandados foram vítimas da violência e da brutalidade de homens engajados na “globalização” imposta pela cobiça ilimitada de potências imperialistas que nada e a ninguém respeitavam nas suas arremetidas em terras do Novo Mundo. Praticavam toda sorte de atrocidades, em geral desnecessárias, ignorando as possibilidades de uma “colonização sustentável.” Como chefe e líder da nação invadida, Nheçu agiu no cumprimento do dever, ao abrigo do direito, da lei e da moral. Não merece as acusações que lhe são feitas. Diante dos fatos, agiu como autêntico herói e mereceria ser cultuado como tal, e nunca denegrido, enquanto seus algozes vêm sendo homenageados de todas as formas e até santificados nos altares. São injustiças que o Tribunal da História deve e precisa corrigir. E foi com esse propósito que registramos aqui as conclusões tiradas de leituras, da análise ponderada dos fatos e da visita aos palcos dos acontecimentos para melhor senti-los.

Balneário Camboriú/SC, 8 de abril de 2001.
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BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
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“Compêndio de Filosofia”, Estevão Cruz, P. Alegre, Editora Globo, 6a. ed., 1954.
Constituição Federal (Edição do Congresso Nacional).
Código Civil e Código Penal (Saraiva).

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(14 de novembro/2008)
CooJornal no 607


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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