07/11/2008
Ano 12 - Número 606


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




ELE QUERIA SER CIENTISTA


 

Com a publicação de “A Sétima Caverna” (Hemisfério Sul – Blumenau – 2008), Harry Wiese faz sua estréia no gênero romanesco. Autor de livros de poesia, contos e história, não é um iniciante e já testou suas habilidades em outros gêneros. Neste alentado volume ele revela fôlego para o romance, gênero em que não são muitos os que se aventuram com sucesso.

Trata-se de uma narrativa de fundo autobiográfico e memorialista, na linha documental a que se filiam tantos romancistas nacionais, relatando a saga do menino Henry Waldmann que, desde os sete anos de idade, queria ser cientista, embora a leitura do romance me sugira que suas tendências se inclinavam mais para a filosofia, tantas e tão variadas são as elucubrações filosóficas que vai pingando no correr do texto, às vezes surpreendentes num menino de tão tenros anos, e que também revelam um certo conformismo diante dos embates da vida naquela fase em que os garotos em geral reagem de formas mais enérgicas. Henry não se rebela, não extravasa ira, não reclama. Mas como o conformismo é uma postura filosófica, ele reforça a minha impressão. Também não chora nunca porque, segundo ele, um cientista não deve chorar. No final, porém, Henry, alter-ego do autor na infância, não se torna cientista e nem filósofo mas escritor, optando pela mais visível das três atividades, todas aliás pouco valorizadas entre nós.

Ambientado no Alto Vale do Itajaí, o romance retrata com minúcias a vida de um casal de colonos de origem germânica e seus dois filhos na luta árdua pela sobrevivência. Residem numa casa modesta, construída de madeira, com as paredes de tábuas largas e com as janelas voltadas para a densa e misteriosa Mata dos Bugres, na encosta de Serra Mirador, e que tanto instigava o desejo de aventuras e o gosto pelas pesquisas do menino que queria ser cientista. Ainda inexplorada, a mata guardava segredos nunca revelados e nela viviam pássaros e animais variados, inclusive onças que às vezes atacavam as criações na calada da noite e tinham que ser espantadas a tiros de espingarda. Bugres, porém, parece que não existiam mais, quase exterminados pelos bugreiros implacáveis, exceto os que se encontravam aldeados por obra de Dom Eduardo, fato a que o texto faz várias referências. Mas a floresta ainda estava inceira, pouco visitada e explorada, exibindo-se em toda sua impressionante grandeza verdejante.

Seis cavernas conhecidas existiam até metade da Serra, maiores e menores, que “num passado não muito distante, serviam de abrigo aos indígenas que viviam nas matas da região” (p. 17). Cavernas não interligadas entre si, secas, nas quais não existiam estalactites ou estalagmites. Mas a Mata dos Bugres guardava outros segredos, inclusive outra caverna – a sétima – que o menino sonhava desvendar, ainda que correndo riscos. Com esse propósito, aproveitando a ausência dos pais, faz secretas incursões pela mata, sempre acompanhado pelo inseparável cão Fidélis, um animal que tinha posturas e gestos quase humanos, carregando sua maleta de cientista onde guardava os achados que lhe parecessem interessantes. E assim, num momento de sorte, acaba por descobrir a sonhada sétima caverna e desvendar o mistério que a envolvia e que seria indiscreção de minha parte revelar. Temeroso da ação de predadores, inclusive humanos, tratou de esconder seu precioso achado sob caprichada camuflagem. Numa atitude também surpreendente, guarda a sete chaves, para si próprio, o segredo da caverna e seu mistério. Quando ao cachorro de estimação, seu trágico final é um momento tocante do livro.

Entre os personagens do romance, afora o próprio narrador, o mais interessante é sem dúvida Criendiu Garlani. Homem idoso e solitário, com os cabelos brancos, era um hábil artesão e músico (embora não tivesse instrumento por razões que virão à tona) e que o garoto considerava um verdadeiro sábio. É verdade que bem pouco se sabe a respeito dele e que não era dado a muito falar, mas se tornou o grande amigo do menino e alvo de sua profunda admiração. “Morava no outro lado da pequena estrada, que passava logo abaixo de nossa casa. Situava-se numa colina. Havia um pátio entre as duas moradias e lá existia um caminho íngreme. De tanto andar, para cima e para baixo, a grama não conseguia crescer direito. Formou-se, assim, um friso e eu gostava de andar por ali” (p. 16). O pisoteio formou um carreiro, tal como nos campos. Criendiu muito ensinou ao garoto e até lhe confidenciou a respeito de seu amor jamais realizado pela índia Rosima. A ele se deve o caso de amor que preenche um dos curiosos capítulos do romance. Nas manhãs silenciosas daquela região bucólica, Henry olhava apreensivo para a casa do velho amigo. Quando avistava a fumaça se elevando da chaminé seu coração se tranqüilizava – Criendiu estava vivo, ainda que velho e doente. Com o passar do tempo a oficina do amigo seria transformada num pequeno museu por obra do engenhoso menino.

Surge também um personagem sinistro, aumentando a galeria dos exterminadores de bugres que agiam na região, e que ignoro se realmente existiu ou é pura criação do autor. Refiro-me a Saci-Bugreiro, matador de índios assim chamado porque tinha apenas uma perna. A ele se creditavam, sem que houvesse dúvida, chacinas de índios, entre elas aquela que se relacionava com a misteriosa sétima caverna e que teria sido a mais bárbara e desumana de todas. Ele agia “a mando de algumas autoridades e de uma pequena parte da população das cidades de Getúlio Vargas e Hammonia” (p. 118).

Para concluir, diria que o romance se fecha com uma espécie de milagre proporcionado pelo Dr. Cícero Bueno, médico em Blumenau e cientista, pesquisador, defensor da ecologia e da causa indígena. A ele o garoto confiou o segredo da sétima caverna e juntos foram ao local, tomando providências para resguardá-la. Embora raros, milagres acontecem e Henry Waldmann foi beneficiado por um deles, impondo nova direção à sua vida de menino criado no ermo e filho de colonos que batalhavam pela sobrevivência. Espécie de prêmio à sua dedicação ao estudo e ao amor pela ciência. Apesar desse final feliz, o romance, no conjunto, infunde no leitor uma certa melancolia.

“A Sétima Caverna” é um romance de leitura agradável, escrito de forma simples e direta, revelando um autor com poder de observação, admirável memória e seguro conhecimento da região retratada. Constitui boa contribuição à nossa resumida estante romanesca.


 
(07 de novembro/2008)
CooJornal no 606


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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