03/10/2008
Ano 12 - Número 601


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




CONVERSAS ESCRITAS


 

“Diários Índios” (Companhia das Letras – S. Paulo – 1996), de Darcy Ribeiro, é um imenso repositório de informações e reflexões a respeito dos índios “Urubus-Kaapor”, do Pará, entre os quais o Autor viveu vários meses, e sobre a região em seus mais variados e curiosos aspectos. O livro foi escrito em forma de carta à esposa Bertha, com as anotações feitas todos os dias, no calor dos próprios acontecimentos. Uma carta que não se destinava a ser enviada e de cujo conteúdo a destinatária só tomaria conhecimento após o retorno do Autor.

É admirável que ele tenha escrito obra de tal qualidade, científica e literária, em circunstâncias tão precárias. O livro é minucioso, rico em informações, recheado de fotos, desenhos, mapas geográficos e genealógicos, além das observações muito agudas e bem humoradas do Autor, fazendo dele o retrato vivo de uma palpitante aventura.

Neste artigo pretendo comentar alguns aspectos da 2a. Expedição, realizada entre primeiro de agosto de 1951 e 9 de novembro do mesmo ano, durando dois meses e oito dias. Essa Expedição, ao contrário da primeira, avançou do sul para o norte, isto é, do Maranhão para o Pará, percorrendo longas distâncias através de florestas nunca antes trilhadas por brancos. Partindo das margens do rio Pindaré, no centro do Maranhão, até a região do Gurupi, onde se situavam as aldeias visitadas. Deparou-se, desde o início, com a seca que esvaziava rios, igarapés e furos, num mundo normalmente governado pelas águas. Agora elas só existiam em poços sujos e fétidos, determinando alterações na vida dos nativos. Quando os igarapés ficavam como “couro branco”, ou seja, mostrando a areia do fundo, impunham-se as mudanças da aldeia para as margens de igarapés maiores. Migrações determinadas por fatores idênticos aos das nordestinas.

Acompanhavam o Autor, nessa Expedição, o antropólogo social inglês Francis Huxley (1), o Prof. Müller, da Escola de Sociologia e Política de S. Paulo, João Carvalho, chefe do Posto do SPI que atendia essas aldeias, ajudante valioso e indispensável, guias, barqueiros, remadores, carregadores, mateiros etc.

Embora a cultura indígena seja o objetivo central da Expedição, o espírito inquiridor de Darcy anota múltiplos outros aspectos. Começa com a observação de que, na região, tudo é lerdo, vagaroso, sem pressa, com a vida amoldada ao clima canicular em que qualquer atividade física cansa e amolenta. Os dias escorrem lentos e marasmáticos. A doença do mateiro e intérprete João Carvalho provoca o atraso de um mês na saída da Expedição, período em que só resta esperar com paciência, sem tugir nem mugir. Nesse período faz anotações sobre as cidadezinhas locais, sua vida e arquitetura, sua gente e sua arte, a exemplo das célebres redes de São Bento.

Observa e anota a curiosa questão do preconceito. Assim, o mestiço de índio e branco é rejeitado pelo branco, que o considera índio, e aceito pelo índio, que o considera dos seus. O próprio mestiço se considera “inferior.” Mas o índio, no caso, é menos preconceituoso que o branco. Na cruza de índia com branco, o filho aceita a mestiçagem; na cruza de índia com negro, o filho não gosta e reclama.

Mas a Expedição parte e vai surpreender os índios no seu “habitat”, em plena selva, antes de retornar ao Posto Pedro Dantas, do SPI, depois de ter andado 800 quilômetros a pé. E nessas andanças vai descortinando a realidade de povos felizes, organizados e pacíficos, cuja cultura já se ressentia do contato com o branco, nem sempre bem intencionado.

As aldeias em que viviam eram, em regra, isoladas, embora existissem aquelas que ficavam próximas, fato que se devia a eventual parentesco entre os respectivos “capitães” (caciques). Entre eles o sentimento parental é muito forte. Formavam-se, nesses casos, grupos de aldeias próximas e ligadas. Nelas se viam, anotou o expedicionário desconsolado, casas com paredes e em sistema de palafitas, contrariando a arquitetura autêntica e já denunciando a influência negativa do branco ribeirinho.

Na seca reinante, a natureza se revelava por completo. Ressecada a cobertura de folhas e gravetos, aparecia o solo arenoso e branquicento, frágil, impróprio para o pisoteio intensivo do gado e a agricultura das grandes lavouras mecanizadas. Nessa situação, as queimadas e desmatamentos constituíam terrível agressão à natureza, fato que o homem branco vem ignorando de forma sistemática, ameaçando transformar a região num deserto inaproveitável. Desde então, os queimadores de mato são cada vez mais numerosos.

Nessa época muitos índios retornavam das profundezas da selva, para onde haviam fugido com a intenção de escapar da epidemia de sarampo, gripe e terçol que estava no auge por ocasião da 1a Expedição. Voltavam fracos, desnutridos e desfalcados de parentes e amigos. Soube-se, mais tarde, que morreram 160 dos 700 “Kaapor” existentes (2). Mesmo assim recebiam bem os brancos, portadores de tantas desgraças.

As aldeias se mantinham, equilibradas, com a caça, a pesca, a coleta e as lavouras. Mas o aparecimento cada vez mais freqüente de invasores da mata indignava os índios. Eles derrubavam as árvores frutíferas sem necessidade, matavam a caça pelo couro e afugentavam os peixes usando métodos inadequados de pesca. Com eles vinham os “grileiros”, fazedores de posses artificiais de terras, tão nossos conhecidos das obras de Monteiro Lobato e Jorge Amado, entre outros. E também os “bugreiros”, exterminadores sistemáticos de índios, tão presentes na história catarinense, aos quais cabia calar os recalcitrantes. Um deles, conhecido como João Grande, se notabilizou por matar índios e espetar suas cabeças em estacas. E assim, passo a passo, o elemento indígena era escorraçado para o ermo, cada vez mais longe, - ou perecia. Esse banditismo também imperava nas vilas onde havia grande mistura de gente das mais variadas procedências.

Os índios revelavam incontida curiosidade pelos brancos e negros. Dividiam os brancos em “verdadeiros” (loiros e de olhos azuis, como Huxley) e “falsos” (os morenos, como Darcy). Ao primeiro contato com os brancos, revelavam grande espanto, em especial diante dos loiros. Estavam sempre procurando tocá-los, admirados com a pele macia, e tentavam até examinar suas partes íntimas para verificar se tinham a mesma cor. Tudo provocava neles a curiosidade: pele, cabelos, barbas, bigodes, roupas, calçados, objetos, comidas. Estavam sempre cercando os visitantes, observando, olhando, e, mais que tudo, perguntando. Pareciam crianças na fase do “por quê”?

Observou o Autor traços de mestiçagem em algumas aldeias, denunciada pela presença de barba, pelo tipo e cor da pele. Indicava a existência de elementos estranhos se cruzando com os índios, mas o fato era aceito com naturalidade. Tudo indica que os indígenas não deixavam viver crianças com defeitos físicos visíveis; raros foram os deficientes encontrados pelo pesquisador. Os índios quase sempre tinham maus dentes.

O casal indígena levava, em geral, vida pacífica. Marido e mulher nunca se separavam, às vezes nem mesmo para fazer as necessidades. Era costume esfregar pássaros bonitos na barriga das mulheres grávidas para que os filhos nascessem bonitos. Também usavam adornar as pessoas e os animais (cachorros) com colares coloridos para certas ocasiões. O pai que não fazia a “couvade” (repouso pós-parto) corria o risco de ficar fraco e morrer. A escolha do nome do filho era feita com grande cuidado e o Autor relata o caso do índio que lhe pediu sugestão a respeito. Ele sugeriu o nome de Rondon, que foi aceito pelo pai, de tal forma que naqueles sertões talvez ainda viva um legítimo “kaapor” com o nome do célebre marechal indigenista. Curiosos ao extremo, os índios não vacilavam em abrir as malas de Darcy, delas retirando alguns objetos. Descobertos, lançavam a culpa sobre as mulheres, acusando-as do mal feito. Não conseguiam conter a curiosidade. Revelavam grande interesse pelos cantos dos brancos. Conviviam em paz com grande quantidade de baratas, nada fazendo para combatê-las, o que exasperava o explorador enojado. Aceitavam o suicídio como solução para situações extremas, lembrando sempre o caso de Uirá, que se lançou ao igarapé e pereceu nas suas águas.

A aldeia índia era povoada de animais. Cachorros ferozes em quantidade, galinhas (que eles não comiam), papagaios, jabotis (encerrados, de carne apreciada), queixadas (mantidos presos), jacumins, mutuns, araras, periquitos.

Produziam objetos de cerâmica, feitos com grande esmero e muita técnica. Segundo o Autor, essa cerâmica se assemelhava à dos Guaranis, aqui do Sul, embora menos decorada. Fabricavam peças úteis e lógicas, apropriadas ao uso. Ele relata o caso de uma oleira que não gostava de mostrar sua obra e sua técnica. Seria, já então, o recato dos artistas?

A selva era a grande mãe dos indígenas, sua fonte de suprimento, sempre respeitada e conservada. Dela tiravam cipós e embiras, folhas e palmas, madeiras, frutas inúmeras, resinas, óleos, látex, variada e rica farmacopéia, caça miúda e graúda, pássaros para alimentação e para arte plumária, peixes de muitos tipos e outros produtos. O Autor relaciona incrível quantidade de produtos medicinais e sua aplicação (pág. 568).

Cultivavam a mandioca (venenosa ou não), batatas, carás, feijão (pintado, vermelho e branco), bananas diversas, fibras (algodão, caroá), cabaças de três tipos, tabaco (todos fumavam), plantas tóxicas para flechas, plantas aromáticas, para tinturas e muitas outras. O “chibé” (farinha de mandioca com água) parecia ser o alimento preferido e mais consumido. Farinha d’água fermentada era a “bebida nacional da Amazônia” (puba).

O ano, para eles, se dividia em duas estações: inverno (fevereiro a maio, época das chuvas) e verão (setembro a novembro, época das secas). Os demais meses eram intermediários, indefinidos, neutros.

Os “Urubus-Kaapor” olhavam para seus vizinhos com ar de nítida superioridade. Assim, os Guajás, seus inimigos, seriam feitos de pau podre, enquanto eles, os “Kaapor”, foram feitos de madeiras nobres. Os Guajás não encontravam o caminho do céu e lá não chegavam porque não eram enterrados, apodreciam na mata, ao relento. E de fato, o Autor encontrou um esqueleto humano incompleto. Seria um Guajá? “Maíra fez os Guajás de pau podre” – repetiam sempre. Esses tradicionais inimigos eram nômades, atrasados, não viviam em aldeias, mas em choças miseráveis, embora fossem temidos, porque os vestígios por eles deixados eram observados com muita atenção. Com o inimigo, mesmo feito de pau podre, não se brinca.

Viviam esses índios num mundo rico de mitos e lendas; tudo se interpretava metaforicamente. Muitas são as páginas dessas crenças colhidas pelo Autor neste livro. Registra, por exemplo, a fuga do índio que é vítima de desgraças. Com seus parentes, amigos, bens e adornos, parte em busca de Maíra e do Paraíso Perdido. Seria uma espécie de suicídio social, afastando-se de todos, ou um recomeço com o enterro do passado doloroso.

Registra, ainda, as sessões de cura, com o trabalho do pajé, sempre usando grossos cigarrões de fumo forte, com seus cantos e litanias monótonas e repetitivas. E muitos outros mitos e lendas, entre elas o Gênesis na visão indígena, bastante parecido com o bíblico, explicações míticas para variados fenômenos. Essas semelhanças levam, inevitavelmente, a indagar qual o mecanismo que provoca a difusão desses mitos por todo o mundo e entre povos de tanto desnível cultural.

Muitas dessas páginas foram colhidas dos relatos de Tanurú, o contador de histórias da tribo, intérprete da linguagem das lendas, intelectual iletrado e “causeur” insuperável.

Embora vencendo a grande resistência dos índios em tocar no assunto, Darcy conseguiu arrancar depoimentos que registram a memória ancestral da tribo sobre a “antropofagia ritual.” Admitiram que “antigamente” o canibalismo foi praticado. A vítima (inimigo) permanecia presa até ser morta, assada e comida por todos, começando pelo fígado. Talvez venha daí a ameaça “te como o fígado!”, corrente ainda hoje. O gosto da carne humana lembrava o da cotia – informavam. O relato colhido assemelha-se ao de Hans Staden e seu cativeiro entre os Tupinambás.

Fechando esse livro monumental, chegou o Autor a duas conclusões fundamentais: a) os “Kaapor” têm nítidas características ameríndias, podendo ser considerados “puros”, uma vez que, se houve miscigenação, foi tão pequena que não afetou essas características; b) os “Kaapor” seriam Tupinambás “tardios”, conclusão não aceita pela Antropologia de hoje. Detalhes de natureza histórica e cultural afastariam a validade dessa conclusão, como explica Mércio Pereira Gomes, no livro já referido na nota número 2.
O livro de Darcy Ribeiro é um extraordinário documento sobre a região visitada e o povo que a habitava, contribuindo em muito para a revelação de um Brasil desconhecido.

____________

NOTAS:
(1) Mércio Pereira Gomes, biógrafo de Darcy Ribeiro, afirma que se tratava de Jules Huxley, aprendiz de antropólogo inglês e que mais tarde escreveu um livro sobre os !Urubus-Kaapor.”
(2) Mércio Pereira Gomes, in “Darcy Ribeiro”, Ícone Editora, S. Paulo, 2000, pág. 69.
 


 
(03 de outubro/2008)
CooJornal no 601


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados