19/09/2008
Ano 12 - Número 599


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




RETRATO SEM RETOQUE DE UMA CULTURA

 

“É Darcy Ribeiro uma das maiores figuras desta segunda metade do século entre nós... procurou ver sempre, para poder ver melhor, a face mais dramática da realidade social de nosso país, pugnando pela realização de uma nova utopia, a construção de um país mais justo, não esta máquina de triturar pessoas sempre em favor dos bem-nascidos e dos donos do poder.”  
M. PAULO NUNES

“Ficamos todos mais brasileiros com a sua obra.”
(De um leitor)


DARCY RIBEIRO (1922/1997), foi um dos mais completos intelectuais brasileiros. Sua vasta obra tem provocado muita discussão e constante manifestação crítica. Seu livro “Diários Índios – Os Urubus-Kaapor”(Companhia das Letras – S. Paulo – 1996 – 628 págs.), um dos últimos que publicou em vida, não tem merecido maior atenção dos analistas, embora seja uma obra da maior importância pelo que revela e corrige sobre uma das nossas etnias formadoras.

“Diários Índios” é um livro-reportagem. Escrito como uma longa carta do Autor à esposa distante, Bertha Ribeiro, mesmo não sendo destinada a ser enviada nunca, assume a forma do diário, em que os fatos são anotados no próprio dia em que ocorrerem, sempre que as circunstâncias o permitem. O Autor tinha, na época, 27 anos, com “o vigor, a alegria e o elã dessa idade.”

Divide-se o livro em duas grandes partes, uma dedicada à 1ª Expedição (pág. 15 a 296) e outra à 2ª Expedição (pág. 297 a 602), além de um Anexo contendo elementos genealógicos (pág. 603 a 616).

A 1ª Expedição foi de 5 de novembro de 1949 a 10 de abril de 1950, durante cinco meses e cinco dias, e a 2ª Expedição de 1º de agosto de 1951 a 9 de novembro do mesmo ano, durando três meses e oito dias, totalizando oito meses e treze dias vividos entre os Urubus-Kaapor, excluindo-se os dias de viagens aéreas. Entre as duas Expedições medeou o tempo de quase ano e meio, permitindo ao pesquisador absorver e ordenar os elementos colhidos na primeira para melhor aprofundar a pesquisa na segunda.

O livro é recheado de fotos, desenhos, mapas geográficos, genealogias, cantos e versos, quadros, esquemas e gráficos que facilitam a compreensão e documentam as conclusões. É um completo manual de Antropologia Aplicada, registrando um trabalho de campo como poucos. Escrito em linguagem simples e correta, nunca se afasta da clareza, aliás presente em todas suas obras. É admirável que tenha conseguido isso, escrevendo nas condições mais impróprias, muitas vezes cercado e assediado por índios fascinados pelos arabescos que traçava naqueles cadernões. O livro, esclarece ele, “é a edição sem retoques dos meus diários de campo nas duas expedições que fiz.”

A 1ª Expedição começou do norte para o sul. Saindo de Belém, seus integrantes rumaram para Bragança e dali para Vizeu, de onde seguiram em velhos batelões de madeira pelo rio Gurupi(1) às diversas aldeias índias “que por tanto tempo projetei visitar e estudar detidamente”, como escreveu o Autor.

Compunham-na o próprio Darcy Ribeiro, em pessoa, o lingüista francês  Max Boudin, encarregado de estudar aqueles idiomas, e o cinegrafista alemão Heinz Foerthmann, a quem cabiam as filmagens e fotografias. Contava com a colaboração de barqueiros, intérpretes, carregadores e funcionários do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), lotados nos postos da região, embora a ajuda destes últimos fosse das mais precárias. E assim enfrentaram marchas de mil quilômetros, penetrando a selva amazônica em estado bruto e vendo os índios em seu próprio habitat, há mais de cinquenta anos atrás.

A 2ª Expedição seguiu em sentido oposto, isto é, do sul para o norte. “Por um caminho diferente – escreveu ele – alcançarei suas aldeias partindo da margem do rio Pindaré (2) , no centro do Maranhão, farei a travessia de centenas de quilômetros dessas matas até suas aldeias no Gurupi. Iremos palmilhar território até hoje geograficamente desconhecido.” Não levavam mapas ou roteiros, mesmo porque não existiam; só poderiam confiar nos guias e na sorte. O objetivo era conhecer locais intocados, mesmo pelos “pacificadores” e pioneiros desbravadores, apanhando os índios em toda sua autenticidade. Seguiam com Darcy o antropólogo social inglês Francis Huxley e o Prof. Muller, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde o Autor se formara, e o “mateiro” João Carvalho.

O primeiro registro a ser feito é o do impacto da selva sobre eles. A grandeza e os mistérios da floresta inceira, a variedade infinita da vegetação, os ruídos de seus habitantes terrestres e alados, o calor implacável, as chuvas constantes ou as secas devastadoras dos períodos – tudo afeta o espírito do jovem explorador e se reflete nestas páginas. As regras daquele mundo governado pelas águas, em que a alta e a baixa das marés do oceano distante enchem e esvaziam sem cessar os rios, igarapés e furos, influindo também nos mangues e igapós que necessitam cruzar. Narra ele, impressionado, o momento em que a maré vazou com velocidade espantosa, pondo a nu de repente o solo arenoso do fundo, onde a embarcação encalhou e teve que esperar a volta das águas. Puderam todos caminhar no leito seco. “Teríamos de esperar ali até as três da tarde, quando a maré voltasse”, conformou-se ele. A variação dessas marés chega a nove e até doze metros. Em outras ocasiões a água é tão ávara que só é encontrada em poços sujos e fétidos.

Chegam, enfim, à primeira aldeia Urubu-Kaapor visitada. Clareira arredondada aberta na mata, cercada pela muralha verdejante, nela se espalhavam as casas. Sempre em formato retangular, as casas são de quatro águas, sem paredes e divisões internas. Existiam as casas, casonas e abrigos provisórios (ranchos). Nada semelhante às ocas arredondadas que nos acostumamos a ver. Cada aldeia tem seu nome.

A própria arquitetura revela que os índios viviam em público, desconhecendo aquilo a que chamamos de privacidade. Tudo feito às claras, sem segredos e sob vigilância recíproca. A presença permanente do perigo gerou o costume de cada um comunicar onde ia ou estava. A aldeia necessitava de saber o paradeiro de cada um de seus membros. Relata o Autor que, às vezes, sentindo necessidade de solidão, se esgueirava solitário para o mato. Mas foi sempre descoberto e denunciado de forma ruidosa, em geral pelas crianças. “O papai branco está fugindo!” – gritavam. Nesse ponto o socialismo primitivo se iguala ao totalitarismo à George Orwell.

A aldeia se mantinha da caça, da pesca , da coleta de frutas e raízes, e, acima de tudo, das roças onde a mandioca era o produto principal. Qualquer caça se dividia entre todos, mesmo que só coubesse um naco a cada um. Tinham dificuldades em entender os brancos que estocavam gêneros para si, sem dividi-los com os demais. Quando a carne abundava, comiam dia e noite, até acabar. Não exercitavam a poupança e nada aprovisionavam, exceto a mandioca na terra, onde poderia esperar até um ano. O chamado “pão do Brasil” se constituía em sua única garantia de sobrevivência. Quando a caça era farta, andavam fortes e nutridos; quando não havia, ficavam fracos e desnutridos.

Não questionavam a propriedade imóvel. Usavam a casa e o terreno das roças com naturalidade e sem contestação, exercendo um direito consuetudinário. Já valorizavam os objetos móveis – armas, artes plumárias, cerâmica. Quem os possuísse em quantidade e qualidade passava a ser considerado rico. Não tardaram, porém, a fabricar objetos falsos e de carregação para trocar pelas miçangas dos brancos.

Pertencentes à nação Tupinambá (3), segundo velha lenda os Urubus receberam esse nome dos inimigos, em circunstâncias mal explicadas. Tinha sentido pejorativo. Existiam os Urubus brancos e pretos. Pesquisando e observando, Darcy Ribeiro descobriu que a tribo se chamava Kaapor e assim se autodenominavam. Desde então passou a chamá-la sempre assim.

Cada aldeia possuía o seu capitão, e não cacique, como nos acostumamos a ler. Ele usava, sempre que possível, uma espécie de capacete vermelho, em geral feito de tecido obtido dos brancos. Sua chefia, no entanto, se exercia mais pela força moral que pelo autoritarismo. Poderia ser dito que cada qual sabia de seus deveres, não precisando de ordens. Existiam ainda os capitães regionais (Tuxauas).

Esses índios valorizavam sobremodo o parentesco e a família. A instituição do cunhadio – como diz o Autor – tinha grande relevância social. Todos conheciam seus ascendentes e podiam reconstituir a própria árvore genealógica até distâncias remotas. Anakanpukú, o maior intelectual da tribo, recitava os nomes  mais de duzentos parentes, com seus significados, os respectivos graus e locais de nascimento e morte, tudo testado e conferido pelo Autor em sucessivas entrevistas. Também conhecia o universo da cultura Kaapor, com seus costumes, lendas, mitos, crenças, religiões, remédios, feitiços etc. Seria, entre nós, um genealogista e folclorista. Isso tudo de memória, numa cultura ágrafa.(4)

A vida nas aldeias corria em paz. Nunca se matavam entre si; isso, pelo menos, era tão raro que o pesquisador não constatou nenhum caso. Sempre que algum indivíduo estava zangado ou nervoso em excesso, os demais se afastavam dele até que passasse a crise, evitando confrontos. Nas raras ocasiões em que todos ou muitos ficavam raivosos, saíam pela mata em excursões punitivas e descarregavam o ódio contra estranhos. Quem pagava eram membros de tribos decadentes, inimigos tradicionais ou negros descendentes dos quilombolas. O Autor registra o resultado de uma dessas sangrentas excursões. Elas também valiam como vingança de males sofridos e que não sabiam explicar – epidemias, doenças, perda de familiares e outros.

As relações entre marido e mulher eram, em geral, cordiais. O trabalho se dividia entre os cônjuges, cuidando ela dos afazeres domésticos e ele do provimento da casa. Outros serviços se faziam em conjunto, como nas roças. Nas excursões de caça, pesca ou coleta, a mulher transportava os objetos para que o marido, livre, leve e solto, pudesse manejar as armas para a caça ou a defesa. A mulher não se tornava “besta de carga” e nunca foi considerada inferior. O casal ensinava e orientava a prole, aplicando-lhe castigos, quando julgavam necessários, às vezes rigorosos, mas também a tratavam com grande ternura.

Embora a fidelidade fosse a regra, aconteciam casos de adultério. O cônjuge ficava aborrecido por alguns dias mas logo tudo voltava ao normal. Nada indicava a idéia de traição. Mas quando a adúltera engravidava do outro, o marido negava a paternidade, recusando-se a fazer o repouso pós-parto (couvade). Ficava, então, pública a negação.

Após o nascimento do filho, o casal se recolhia à  casa, onde ficava recluso – era a couvade. O marido ficava de resguardo por cinco dias, até a queda do umbigo do recém-nascido. A mulher permanecia por dez dias na rede, sem nada fazer. “A couvade procura proteger não só o filho, mas também o pai, que é tido como em perigo”—depõe o Autor. A reclusão é acompanhada de dieta especial. (5) A couvade constituía-se na ostentação do orgulho paterno. Acreditavam que sua transgressão causava males ao filho, mesmo à distância.

Com o trabalho assim parcelado, é claro que a situação do solteiro ou viúvo, ou da mulher nessas situações, se tornava difícil na tribo. Tornava-se um quase marginal.

Aspecto curioso, bem observado pelo Autor, se revelava na incapacidade dos índios entenderem desenhos, mesmo os mais simples. Não conseguiam identificar casas, objetos ou armas desenhados num caderno. As sociedades ágrafas não sabem “ler” em duas dimensões.

Suas tentativas de desenhar nos cadernos do Autor resultavam em riscos toscos como os de uma criança. Quando não rasgavam o papel com a pressão exagerada da caneta.

As línguas faladas na região pareciam infinitas e diferenciadas, tanto que aqueles que se expressavam numa delas não entendiam as demais. Segundo o Autor, em acordo com o lingüista da Expedição, seriam mais de mil!

Na época da 1ª Expedição grassava naquelas aldeias tremenda epidemia de sarampo, gripe e terçol, levada pelos brancos. Sem defesa, morreram ou cegaram às dezenas, talvez centenas. Aldeias inteiras fugiram espavoridas para a selva, escapando das doenças – ou levando-as. Partiam como Uirá, em busca de um deus que os salvasse.(6)  Foi uma mortandade. Só se salvou uma aldeia cujo capitão proibiu a saída dos moradores.

Mas o livro não cabe nestas notas. Muitos outros aspectos são mostrados ao vivo e no próprio meio. As festas, a nominação, a iniciação, as comidas e bebidas, a cerâmica, a rica arte plumária, as relações sexuais, as relações com outras tribos, como os Tembés e os Timbiras, com os negros e os brancos, as excursões pela floresta, a pé ou em canoas, os trajes e usos corporais, as pajelanças, a aceitação do suicídios nas situações limites, os feitiços e muitos outros são registrados com minúcia e cuidado.

Também nasceram dessas Expedições um livro de Boudin sobre o idioma tembé, um belo livro-álbum sobre arte plumária feito por Bertha e Darcy, além de um filme de Foerthmann, cujos originais teriam desaparecido do SPI, no Rio de Janeiro.

Sente-se uma ligeira melancolia nas palavras do Autor quando constata a inclinação dos nativos – “os meus índios”, como ele diz – pelas roupas, calçados e badulaques dos brancos, cujo uso os torna dependentes destes, em especial de regatões e mascates sem escrúpulos que os exploram da maneira mais vil. Essa penetração avassaladora dos hábitos “civilizados” levaria à deterioração da cultura indígena, rica e autóctone, como de fato aconteceu. Angustiado e impotente diante desse processo inexorável, as páginas de seu livro se transformam num clamor contra a destruição de uma raça altiva e acolhedora.

Mas é chegado o momento do retorno. A presença de tantos brancos, e por tanto tempo, perturba a vida daquelas aldeias remotas. É a hora das despedidas e agradecimentos pela hospitalidade, troca de presentes e aquisição de peças para um museu em formação.

Essa, enfim, a súmula de um livro riquíssimo, fundamental para nos conhecermos, escrito por um cientista social corajoso e amante da verdade, que preferiu enfrentar o perigo e o desconforto a ficar produzindo obras livrescas e falsas nos atapetados gabinetes.


_______________________

NOTAS:

(1)    Rio do Estado do Pará que servia de limite entre ele e o Maranhão. Nasce na Serra do Gurupi e desemboca no Atlântico, onde forma um delta navegável (Enciclopédia Brasileira Globo, P. Alegre, 1972, Vol. V).
(2)    Rio do Estado do Maranhão (Enciclopédia, cit., Vol. IX).
(3)    Enciclopédia, cit., Vol. XI.
(4)    O livro contém genealogias com mais de uma centena de pessoas.
(5)    Dicionario de Sociologia, Henry Pratt Fairchild, Edictor, Fondo de Cultura Económica, México/ B. Aires, 1949, pág. 7; Enciclopédia, cit., Vol. IV.
(6)    Em um dos ensaios do livro “Gentidades”, o Autor narra a lenda de Uirá (L & PM Editores, P. Alegre, 1997, pág.91).
 

                                  (Publicado in “Literatura”, Brasília, número 21, ag/2001, págs. 41/46).

 
(19 de setembro/2008)
CooJornal no 599


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados