29/08/2008
Ano 12 - Número 596


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




BUGREIROS DE PERTO E DE LONGE



 

De longos anos venho lendo o que encontro sobre Martinho Bugreiro, o mais hábil e frio exterminador de índios em Santa Catarina, e outros que se entregaram à mesma atividade. Conheci, mais tarde, o Prof. José Finardi, historiador, estudioso do assunto, nascido e criado em Ascurra, palco de inúmeras ações do temido bugreiro. Através de suas obras e em nossas conversas muito fiquei conhecendo da terrível carreira daquele homem e seu pavoroso “esquadrão da morte.” Soube depois que ainda vivia o filho mais novo de Martinho e tentei um contato pessoal com ele, mas nunca concordou em me receber. Creio que perdi a oportunidade única de ouvir o “outro lado” da história oficial.

Lendo agora o opúsculo “Ajudante Félix do Rego”, de Reginaldo Miranda, incluído na série “Vultos da História do Piauí”, ocorreu-me um paralelo entre as ações dessa figura e Martinho Bugreiro na sua sangrenta tarefa de dizimar os infelizes que tiveram a pouca sorte de viver nesta terra na época de sua descoberta. Ambos, de certa forma, tiveram suas ações “legalizadas”: o piauiense foi militar, agia por ordem superior e à custa do erário; o catarinense não tinha vínculo com o serviço público, mas obtinha os recursos para suas criminosas expedições dos empresários do Vale do Itajaí, sob o beneplácito do Poder Público, uma vez que tanto o juiz, como o promotor e o delegado tinham pleno conhecimento de suas matanças. No retorno delas, Martinho “prestava contas” dos dinheiros recebidos (consta que era meticuloso nisso) e trazia meninas índias para colocá-las como serviçais em casas de gente fina.

A ação do piauiense foi bem mais ampla, estendendo-se pelo Piauí, Maranhão e partes dos territórios vizinhos. Seus ataques visavam diversas tribos, como Timbiras, Gueguês, Acoroás, creio que as maiores vítimas, Pimenteiras e Gamelas. Suas expedições se realizavam dentro de um “plano do governo”, cujo objetivo parecia ser a criação de um aldeamento único onde a mão-de-obra indígena fosse explorada em benefício da fazenda real e de seus administradores. A investida contra os Acoroás foi tão violenta que provocou o protesto de um juiz ordinário, relatando as atrocidades cometidas, mas parece que não surtiu efeito. Martinho, “empresário independente”, mantinha um verdadeiro esquadrão da morte, bem treinado e armado, com o qual atacava os Xókleng e Kaingang nas encostas da Serra do Mar, no Alto Vale do Itajaí. As acometidas se faziam pela madrugada, apanhando os indígenas adormecidos, e matando-os sem perdão. Davam alguns tiros para provocar o pânico e depois caíam de facão sobre as vítimas, cortando-lhes as orelhas, cujos pares constituíam a prova do “serviço.” Em depoimento ao antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, um bugreiro afirmou que “a carne dos índios cortava fácil, assim como quem corta banana.”

E, no entanto, Félix do Rego “foi um filho dedicado, um esposo amantíssimo e um pai carinhoso” – como informa Reginaldo Miranda em seu ensaio. Martinho, por sua vez, foi um homem sério, correto nos negócios, cumpridor de suas obrigações e estimado pelos familiares. São os insondáveis mistérios da alma humana, repleta de enigmas e paradoxos inexplicáveis. Em relação ao piauiense, Reginaldo Miranda desvendou sua atribulada biografia e revelou aos leitores sua decisiva contribuição para dizimar uma raça que considerava inferior. Nem um e nem o outro manifestaram jamais o menor arrependimento ou peso de consciência. É um pequeno livro que faz pensar nas causas que tornaram tão violenta a sociedade brasileira de hoje.

 

(29 de agosto/2008)
CooJornal no 596


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados