15/08/2008
Ano 12 - Número 594


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio




CRISPIM MIRA



 

Conversando com um jornalista de outro Estado, em Brasília, ele me dizia que andou por aqui e muito indagou sobre Crispim Mira, em Joinville, Blumenau, Florianópolis e outras cidades, e quase nada souberam lhe dizer. Sua curiosidade pelo escritor e jornalista catarinense fôra despertada pela leitura de meus artigos e do livrinho que sobre ele publiquei (“Jornalista por Ideal” – Fundação Casa Dr. Blumenau – 1992). Também não encontrou nas livrarias e sebos um só livro de sua autoria, todos esgotados e em geral desconhecidos. A conversa me deixou a desagradável sensação de que, mesmo tendo escrito inúmeros artigos, em jornais e revistas, além do referido volume sobre Crispim Mira, perdi o meu latim. Até mesmo Joinville, terra natal do escritor e jornalista, muito pouco sabe a respeito dele. Nosso Estado não tem o hábito de cultivar seus expoentes na área cultural e a eles votamos total indiferença. Enquanto em outros Estados são exaltados ao exagero, como acontece com Raul Bopp no Amazonas, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir no Pará, Da Costa e Silva no Piauí, José de Alencar no Ceará, Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, José Américo e José Lins do Rego na Paraíba, Gilberto Amado em Sergipe, Jorge Amado na Bahia, Guimarães Rosa e Mário Palmério em Minas, Monteiro Lobato em São Paulo e Érico Veríssimo no Rio Grande do Sul, - isso para citar apenas exemplos, - aqui não sabemos de ninguém, não os conhecemos e, o que é pior, não revelamos interesse em conhecer. Cruz e Sousa, depois da campanha realizada a respeito dele, é lembrado, mas de forma vaga, revelando que é um conhecimento superficial e que a maioria nunca o leu.

E, no entanto, Crispim Mira (1880/1927) foi um jornalista modelar, em tudo destoante do jornalismo cinzento de uma época em que os jornais, em geral, se atrelavam a facções políticas. Investigativo e de combate, dono de agudo senso crítico e de grande coragem, denunciava às claras as falcatruas que já então se cometiam. Numa campanha contra os desmandos que se praticavam na Alfândega de Florianópolis, foi vítima de atentado em sua mesa de trabalho, na redação de seu jornal, a “Folha Nova”, recebendo um tiro na boca que lhe custou a vida. O crime provocou imensa revolta das pessoas independentes e a tentativa de abafar as notícias, prática até hoje vigente no país. O processo instaurado desapareceu por mistério e o mesmo aconteceu com os exemplares do jornal do período na coleção da “Folha Nova” da Biblioteca Estadual. Seria uma tentativa de esconder a história? Desde então, uma cortina de silêncio recaiu sobre ele e sua obra. Recebeu algumas homenagens póstumas, dessas feitas para efeito externo, e nada mais. Só Francisco José Pereira e eu procuramos desvendar um pouco mais, sem nenhum sucesso, tanto que o pó do esquecimento continua acumulado sobre sua memória.

Além de jornalista, Mira foi advogado provisionado e escritor. No levantamento que fiz de sua bibliografia, encontrei, a muito custo, 18 obras de sua autoria, sendo 14 livros e opúsculos literários e tratando de assuntos da época e 4 jurídicos, uma vez que era costume publicar em volumes os trabalhos mais importantes da atividade forense. Dentre seus livros, avulta o imenso volume denominado “Terra Catharinense”, publicado em 1920, e que é dos mais interessantes repositórios sobre as coisas e a gente de Santa Catarina. Foi redigido, na origem, como tese para um Congresso de Geografia, em Belo Horizonte, o que colocou seu autor como um dos pioneiros dos estudos geográficos em Santa Catarina. Melhorado e aumentado, mereceu elogios da melhor crítica, entre eles de Monteiro Lobato, que lhe dedicou dois artigos, e que era o mais importante crítico da época. Escrito em linguagem elegante e agradável, repleto de dados e informações, fotos, desenhos, estatísticas e tratando dos mais variados temas, é um documento importante sobre a realidade catarinense de então. Hoje extremamente raro, o livro bem mereceria uma caprichada reedição. O exemplar que foi meu, assim como muitos outros livros e documentos sobre Crispim Mira, doei ao Arquivo Público de Joinville, por entender que ninguém melhor que sua terra natal teria interesse em preservá-los.

Roubado à vida pela violência dos mandões da época, aos 47 anos de idade, Crispim Mira é figura que não pode e não deve ser esquecida pelo povo catarinense. Sua vida e sua obra precisam ser apontadas como exemplo de coragem e talento dedicados à causa pública.

______________________________
PS – Tomei conhecimento de que foi publicada nova edição de “Terra Catharinense”, mas ainda não a vi nas livrarias. Formandos em jornalismo da Faculdade Estácio de Sá, de Florianópolis, realizaram excelente vídeo sobre Crispim Mira, no qual dei longo depoimento. São boas notícias.
 

 

(15 de agosto/2008)
CooJornal no 594


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

Direitos Reservados