08/08/2008
Ano 11 - Número 593


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

OITENTA ANOS DE SILÊNCIO


 

Nome de rua

A despeito da importância de sua obra e de sua revolucionária atuação como jornalista, Crispim Mira (1880/1927) é mais lembrado como nome de rua em Florianópolis. Nosso Estado não cultiva a saudável tradição de cultuar seus expoentes, menos ainda na área da cultura. Enquanto em outros Estados são exaltados, às vezes até ao exagero, como acontece com Raul Bopp no Amazonas, Bruno de Menezes e Dalcídio Jurandir no Pará, Da Costa e Silva no Piauí, José de Alencar no Ceará, Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, José Américo e José Lins do Rego na Paraíba, Gilberto Freyre em Pernambuco, Gilberto Amado em Sergipe, Jorge Amado na Bahia, Guimarães Rosa e Mário Palmério em Minas, Monteiro Lobato em São Paulo e Érico Veríssimo no Rio Grande do Sul, - para citar alguns casos, - aqui a regra é votar o esquecimento aos que “jazem no silencioso oásis da morte” – para repetir Humberto de Campos. E, no entanto, apesar do silêncio que recai sobre ele há oitenta anos, Crispim Mira foi jornalista modelar, inovador e corajoso, em tudo destoante do jornalismo cinzento de uma época em que os periódicos em geral se atrelavam a facções políticas. E se isso não bastasse, tornou-se o mártir catarinense da profissão, vitimado pela intolerância e prepotência, assassinado aos 47 anos de idade, na redação de seu jornal, em plena Capital do Estado. Inconformado com isso, muito pesquisei sobre sua vida e estudei a obra, fazendo inclusive o único levantamento existente de toda ela. Publiquei inúmeros artigos sobre ele na imprensa, depois reunidos no livro “Jornalista por Ideal”, publicado pela Fundação Casa Dr. Blumenau (1992).

Súmula de uma vida breve

Nascido em Joinville, Crispim Mira nunca completou uma educação formal. Indócil e independente, freqüentou vários colégios, fugindo de um deles por não suportar a rigidez de suas regras. Andou pelo Rio de Janeiro e acabou retornando à terra natal, onde se iniciou muito cedo no jornalismo, cedendo a irresistível vocação. Com apenas 19 anos se tornou redator da “Gazeta de Joinville” e depois de outros jornais, escrevendo também para periódicos do Rio e de Florianópolis. Leitor incansável e observador arguto, aprendia com facilidade e logo amealhou considerável cultura. Escrevia bem e tinha a palavra fácil, proferindo palestras e discursando com elegância. Em nossa Capital, onde se fixou, escreveu para vários jornais e manteve a “Folha do Commercio” e a “Folha Nova”, ambos de sua propriedade, este o último em que escreveu e onde sofreria o mortal atentado. Tornou-se advogado provisionado, militando em muitas causas e até escrevendo ensaios jurídicos depois publicados em opúsculos (“Ação de Indenização”, “Ação de Manutenção”, “Hábeas corpus” e “Suspeição”). Viajante incansável, representou Santa Catarina em várias comissões, inclusive no 6º. Congresso Brasileiro de Geografia, na condição de tesista, em Belo Horizonte, e esteve presente na celebração do acordo de limites entre Santa Catarina e Paraná. Representou o Estado na questão de limites com o Rio Grande do Sul. Foi sócio-correspondente da Academia Mineira de Letras e do Centro Matogrossense de Letras. É patrono da Cadeira número 5 da Academia Catarinense. Era casado com Olindina de Mira e deixou quatro filhos. Depois de vários anos em Florianópolis, seus restos mortais foram trasladados para a cidade natal. O Arquivo Histórico de Joinville mantém pasta específica sobre ele e nela se encontram vários trabalhos de minha autoria.

A obra e sua importância

Na bibliografia de Crispim Mira, segundo a exaustiva busca que realizei em vários locais e por longo tempo, contam-se 18 obras, entre livros e plaquetas, sendo 14 literárias e 4 jurídicas (estas já nominadas). Elas abordam temas variados, como nossa terra e nossa gente, o município natal, os alemães no país, impostos, situação financeira, limites interestaduais, problemas republicanos, finanças públicas, política, produção industrial e de cereais, agropecuária, feiras, eventos etc. predominando sempre a preocupação com o Estado. Sua obra capital é o livro “Terra Catharinense” (Tipografia da Livraria Moderna – Florianópolis – 1920), espécie de compêndio sobre o Estado, abordando quase todos os aspectos, em linguagem límpida e clara. Ainda que muitos dados estejam defasados pelo tempo, a leitura é indispensável para bem entender nossa terra. Apresentado, ainda em elaboração, como tese no 6º. Congresso Brasileiro de Geografia (MG), foi aprovado, colocando o autor entre os precursores dos estudos geográficos no Estado. Importante também é o livro “Crimes e Aventuras dos Irmãos Brocato” (Florianópolis – 1917), uma narrativa de fatos verídicos, com acentuado sabor jornalístico, do crime que abalou Lages, envolvendo os irmãos italianos Thomaz e Domingos Brocato, que teriam sido os autores do homicídio de Ernesto Canozzi, figura estimada na região. É livro de leitura cativante, com momentos da melhor literatura policial, mesmo deixando no leitor a dúvida sobre a autoria do crime, só afastada no final diante da cabal confissão de Domingos. Foi publicado em segunda edição, em 1978, pela Associação Catarinense de Medicina. Outro livro dos mais curiosos saídos de sua pena é “A situação financeira e política de Santa Catarina”, publicado em 1924. É um terrível libelo contra o governo de Hercílio Luz e seu sucessor, principalmente pelas atitudes do Secretário do Interior e Justiça, considerado por ele “um político de invenção”, revelando quão antigo é o mau uso do poder em benéfico de grupos. Na situação apontada pelo panfletário, o Juiz de Direito da comarca acumulava a função de Secretário de Estado, sem abdicar da magistratura, inclusive na área eleitoral. Anomalia das mais gritantes em que o mesmo personagem integrava dois poderes ao mesmo tempo. Os demais livros são também interessantes, retratando de forma viva a realidade daqueles dias, no Estado e no Brasil.

Pela sua importância, Crispim Mira obteve reduzida fortuna crítica. Poucos são os comentários sobre sua vida/obra e, a bem dizer, nenhum específico. Não teve a sorte de encontrar um biógrafo que o retratasse de corpo inteiro. É curioso observar que Monteiro Lobato, então o mais influente crítico literário do país, teceu rasgados louvores ao catarinense. O volume “A Onda Verde”, de suas Obras Completas, contém dois ensaios sobre Crispim Mira. Foi através de Lobato que cheguei à obra de nosso conterrâneo, aqui completamente esquecido.

A tragédia

O atentado contra Crispim Mira aconteceu em 17 de fevereiro de 1927 e o jornalista, ferido com gravidade, com um tiro na boca, foi recolhido ao Hospital de Caridade e submetido a cirurgia. Resistiu até 4 de março, quando faleceu, provocando grande consternação e revolta. Ele vinha denunciando, através da “Folha Nova”, os desmandos que ocorriam na Comissão de Melhoramento do Porto, dirigida na ocasião por Tito Corrêa Lopes. Ofendido, este ingressou em juízo, no dia 16, com uma medida preparatória para um processo penal e, não obstante, contratou um grupo de cinco indivíduos para “darem uma lição” no jornalista. Eles invadiram a redação e iniciaram a agressão, mas não contavam com a pronta reação de Mira e seus colaboradores, resultando um entrevero durante o qual aconteceu o ferimento. Segundo alguns, o próprio filho de Lopes teria sido o autor do disparo fatal. Grande foi a comoção pública, a imprensa muito discutiu e questionou e o acontecimento alimentou comentários sem conta tanto no Estado como fora dele. O atentado contra Crispim Mira, provocando sua morte precoce e cortando a carreira de um escritor de talento é uma página negra da história catarinense, página que, embora amarga, não pode e não deve ser esquecida para que nunca mais se repita.

Segundo Fernando Jorge, bravo jornalista e meu bom amigo, em seu célebre livro “Cala a boca, jornalista!” (Editora Vozes – S. Paulo – 4ª. ed. - 1992), todos os acusados ficaram impunes e sobre o crime “pesa o mais tumular silêncio” (pág. 182). Esse livro é o mais completo levantamento das atrocidades contra jornalistas em nosso país.

Afora o meu, o único livro que surgiu sobre o jornalista foi “As Duas Mortes de Crispim Mira”, de Francisco José Pereira.   (Março de 2007)

 

(08 de agosto/2008)
CooJornal no 593


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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