05/07/2008
Ano 11 - Número 588


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

EXCURSÃO AO EPICENTRO DO “CONTESTADO”
 

                                         Jandira e Enéas
14, 15 e 16/01/02

CALMON, O HOMEM

Miguel Calmon du Pin e Almeida era natural da Bahia, pertencente a uma família rica e de grande influência. Estudou engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, período em que conviveu com a juventude das mais prestigiosas famílias brasileiras. Teve entre seus colegas o futuro escritor Affonso Henriques de Lima Barreto (1881/1922), mas este não concluiu o curso. Enquanto Calmon se vestia bem e tinha modos distintos, Lima Barreto se encontrava à beira da miséria, trajando-se mal e permanecendo afastado de grupos e reuniões.

Segundo Francisco de Assis Barbosa, o mais categorizado biógrafo de Lima Barreto, o escritor “evitava os contatos desagradáveis, talvez por temor de alguma desfeita, como parece ter acontecido com Miguel Calmon du Pin e Almeida, que o haveria, certa vez, tratado com desprezo. Este incidente marcou, aliás, a inimizade entre o filho do almoxarife das Colônias de Alienados e o rapaz de nome ilustre, para quem o futuro não pouparia benesses, dando-lhe tudo: além de dinheiro, sucesso na política.” (1)

E de fato, com apenas 27 anos de idade, Calmon veio da Bahia para assumir o poderoso Ministério da Viação, disposto a executar à risca um ambicioso projeto que incluía a ligação ferroviária dos grandes centros do país, além de outras medidas de largo alcance. Para Lima Barreto, no entanto, seu ex-colega era o “símbolo do sucesso fácil”, reservado aos que tinham nome e dinheiro, e desde o início assumiu uma postura de absoluta oposição ao antigo companheiro da Escola Politécnica. “Em conversa com o autor – escreveu Francisco de Assis Barbosa – Bastos Tigre também se referiu à ojeriza do romancista pelo antigo colega, a quem chamava sarcasticamente “Bel-Ami”, comparando-o ao célebre personagem de Maupassant. Estando Lima Barreto embriagado, aludia às vezes à sua intimidade com Calmon, dizendo: “Vou comprar uma espada para matar o “Bel-Ami”. O artigo de Lima Barreto “O Ideal de “Bel-Ami” é um terrível ataque a Miguel Calmon.” (2)

As críticas de Lima Barreto, porém, parecem exageradas, tendo a história proclamado a competência de Calmon como técnico e administrador. São reconhecidas as grandes obras executadas em sua gestão. Seja como for, é curioso observar que ambos ingressaram na história, ainda que por caminhos diversos. Lima Barreto, mulato, pobre e tímido, sagrou-se como um de nossos maiores escritores e, segundo o rigoroso crítico Agripino Grieco, foi “o mais brasileiro de nossos romancistas.” Calmon, por outro lado, sagrou-se como homem público capaz, merecedor de muitas homenagens, entre elas a de dar seu nome ao município catarinense de Calmon. Por ironia da sorte, a antipatia de Lima Barreto contribuiria para sua sobrevivência histórica, uma vez que na vasta bibliografia sobre o escritor Calmon é sempre lembrado. Há males que vêm para bem! 

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(1)          “A Vida de Lima Barreto”, Francisco de Assis  Barbosa,
Rio de Janeiro, José Olympio/MEC,
6a. ed., 1981, pág. 90
(2)                          Op. cit., pág. 205, merecendo referências ainda
às págs. 80, 91 e 192.

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CALMON, A CIDADE

Sede de município criado há cerca de dez anos, antigamente denominada Osman Medeiros, a cidade de Calmon está situada ao norte do Estado de Santa Catarina, tendo como cidades vizinhas Matos Costa, Timbó Grande e Caçador, da qual dista 32 km, em precária estrada de chão. Durante muitos anos foi distrito de Porto União e, depois, de Matos Costa, até obter sua emancipação. Fica a 500 km de Florianópolis, tendo hoje uma população de 2.322 habitantes, situando-se numa altitude de 1.181 m, o que faz dela uma das cidades mais frias do Estado.

Calmon nasceu à margem da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, depois denominada Rede Viação Paraná-Santa Catarina, e foi durante longos anos uma das sedes da célebre Companhia Lumber (Southern Brazil Lumber & Colonization Company), pertencente ao Sindicato Percival Farquhar. A outra sede ficava em Três Barras. A ferrovia encontra-se desativada e entregue ao abandono.

A Companhia Lumber é apontada como uma das causadoras da “Guerra do Contestado”, que envolveu a questão de limites entre Santa Catarina e o Paraná, e que foi o mais sangrento episódio da história brasileira. Nessas circunstâncias, Calmon serviu de palco para violentos atos de guerra, tendo sido incendiadas a serraria, barracões e casas, obrigando muitos moradores a fugirem do local, enquanto outros pereceram, vítimas dos ataques dos revoltosos. A população da região designava esses episódios como a “Revolta dos Jagunços” e foi assim que ouvi falar deles desde os dias de criança. Matos Costa, distante vinte quilômetros, também sofreu violentos ataques e lá se travaram diversas batalhas.

É natural, pois, que Calmon guarde muitos sinais de uma guerra que durou tantos anos (1912/1916), não apenas físicos, mas também na memória coletiva e na tradição oral. Inúmeros episódios ali ocorridos já se encontram registrados em obras sobre o “Contestado”, a respeito do qual existe uma bibliografia que não cessa de crescer. Muito, no entanto, ainda está por descobrir e foi com essa intenção que surgiu o “Grupo Resgate”, liderado pelo jornalista João Batista Ferreira dos Santos, mais conhecido como JB. Em constantes pesquisas e andanças, o grupo encontrou grande quantidade de projéteis e algumas peças de armas de fogo, objetos diversos e até alguns documentos da época das hostilidades, tudo já descrito e fotografado. Também vem tomando depoimentos de pessoas mais antigas, procurando preservar o que restou, além de reunir tudo que diga respeito ao assunto, como matérias jornalísticas, livros, revistas, fotografias e tudo mais, formando um acervo notável, com vistas à criação de um museu na antiga estação ferroviária, construída no estilo padrão da época, com beirais largos e plataforma de pedra-ferro, local que não poderia ser mais adequado, tanto pelo passado histórico como pela autenticidade, caso consiga vencer a inacreditável burocracia nacional. O grupo publica o jornal “Resgate”, fixando em letra de forma suas mais importantes descobertas. O jornal, por sua vez, consta do recente livro sobre o “Contestado”, de Celestino e Sérgio Sachet, reunindo as crônicas da série televisionada.

Lutando com dificuldades, com escasso apoio, o “Grupo Resgate” é mais um exemplo de que as coisas da cultura, no Brasil, sempre “foram levadas no peito” pelos cidadãos conscientes, com minguada ajuda oficial, quando não enfrentando a hostilidade do Poder Público. Tão logo tomei conhecimento desse grupo, tratei de divulgá-lo pelos meios ao meu alcance e incentivar os seus integrantes.

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Notas:

(1)                     “O Contestado”, Celestino e Sérgio Sachet,
Florianópolis, Editora Século Catarinense,
2001, pág. 330.
(2)                              “O Contestado: Roteiro para leituras”, 
no site da UBE-SC e
site sobre o município de Calmon.
(3)            “Grupo Resgate” – Avenida Manoel Fortunato, 935
– 89430-000 – Calmon – SC   -
(4)                                                      Tel. (0xx49)573-0131

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CALMON E EU

Como meu padrasto fosse funcionário da Companhia Lumber, entre 1943 e 1951, muitas férias do internato passei em Calmon, no inverno e no verão. Privei, assim, da companhia daquele povo, entre o qual fiz grandes amigos, e conheci a cidade e os arredores. Montado no meu cavalo baio, - o “Luar de Prata”-, percorri campos, matos e carreiros da região, visitando fazendas, indústrias, povoados, cachoeiras, festas e famílias amigas. Mais tarde, numa bicicleta sueca da marca “Horimek”, creio que a primeira a circular na cidade, prossegui nas andanças, tendo, inclusive, pedalado de Calmon a Matos Costa, retornando no mesmo dia, numa época em que a estrada era quase inexistente e não tinha movimento algum. Como não me dei o trabalho de levar uma prova de meu “raid”, muitos duvidaram, inclusive meu padrasto, embora eu tivesse permanecido muitas horas na cidade vizinha e até almoçado na casa de um colega de Colégio. Lembro-me de que um mecânico, sabedor de minha aventura, fez a seguinte observação: “Você deve ter aqui alguma paixão, porque só por amor você faria uma coisa dessas!” Mas o fato é que nunca esqueci daquela jornada solitária, em especial da travessia dos campos de General Dutra, ermos e limpos, banhados de sol, com o vento frio afagando as faces e os quero-queros gritando raivosos em virtude de minha invasão. Graças a esse gosto pelas andanças, talvez por herança de antepassados nômades, os beduínos do deserto, tudo em Calmon se tornou familiar, gravando-se para sempre na minha memória.

Nessa época de vida livre e largada, embora já fosse viciado na leitura, não me passava pela cabeça que seria escritor, ainda que estivesse absorvendo, sem saber, fatos e imagens que contribuiriam, mais tarde, para a formação do ficcionista em que, bem ou mal, me tornei. Essa convivência com as coisas de Calmon, sua geografia e sua paisagem, os acontecimentos e as pessoas, os costumes, valores, crenças, idéias e, acima de tudo, a linguagem rica e criativa inspiraram muitos de meus contos, crônicas e até novelas, onde aparecem personagens que guardam semelhança com figuras locais, algumas das quais se identificam neles. Os leitores mais atentos também descobrem acontecimentos e lugares descritos, como a célebre Pirambeira, onde o trem anunciava sua chegada triunfal, martelando os velhos trilhos e a locomotiva fazia uma choradeira com o apito, manejado por maquinistas que eram verdadeiros artistas na exploração de todas as potencialidades do aparelho. Por isso tudo, minha ligação com Calmon é muito íntima, ainda que não a visite com a freqüência que desejaria, de tal modo que divido entre ela e Campos Novos a minha naturalidade – sou meio camponovense e meio calmonense. No meu imaginário elas se misturam, se envolvem e se completam como se fossem uma só.

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CALMON: A EXCURSÃO

Foi por tudo isso, e muito mais, que Jandira e eu decidimos visitar Calmon e outras cidades da região do “Contestado”, cumprindo uma promessa sempre renovada aos amigos de lá e várias vezes adiada. Escolhemos o mês de janeiro para fugir de duas coisas: do frio intenso de lá e do excessivo movimento daqui. Depois de tudo programado, pusemos o pé na estrada.

Numa segunda-feira ensolarada, dia 14 de janeiro de 2002, por volta das 9,00h, deixamos para trás o bulício de Balneário Camboriú e tomamos a BR 470, no rumo da Serra-Acima. Passamos ao largo de Blumenau, Indaial, Rio do Sul e outras cidades do Vale do Itajaí, todas nossas velhas conhecidas e onde temos bons amigos, para almoçar no “Restaurante Cansian”, acavalado num coxilhão, bem no encontro dessa rodovia com a BR 116, pela qual prosseguimos, passando por Ponte Alta, Santa Cecília e Le Bon Regis, todas cidades campeiras bem características. Pelas 16,00h nos alojávamos no antigo “Ronda Hotel”, em plena avenida principal de Caçador, nosso velho conhecido (Apt. 37). Hotel amplo, espaçoso, de teto alto e com garagem coberta, coisas que desapareceram nas grandes cidades, onde a ganância imobiliária suprimiu todos os cantinhos disponíveis. No saguão do hotel corria um delicioso chimarrão, cuja cuia passava de mão em mão, e está visto que suguei várias delas para matar as saudades.

Na portaria nos aguardavam mensagens de boas-vindas do pessoal de Calmon e não tardaram a aparecer dois repórteres do jornal “Gazeta”, tablóide publicado na cidade, moderno e bem feito. Fizeram uma entrevista, com perguntas bem pensadas, e tiramos fotos. Espantou-me a pouca idade dos moços; poderiam, com folga, ser meus filhos mais moços!

Acomodadas as coisas, vestimos nossas blusas de mangas longas e partimos para as andanças a pé pela cidade. Percorremos a avenida central (Barão do Rio Branco), larga e limpa, fomos à estação ferroviária, prédio de linda arquitetura, hoje entregue ao abandono, visitamos o mirante, subimos e descemos escadarias e ladeiras em que é pródiga a cidade, situada à margem do Rio do Peixe, com topografia muito irregular. Reencontrei lugares ligados, por alguma razão, à minha juventude, e lembrei de pessoas, umas já “estudando a geologia do campo santo” (como dizia Machado) e outras “em lugar incerto e não sabido” (como dizem os oficiais de justiça). Jantamos num restaurante freqüentado pela garotada, no alto da avenida, e depois voltamos a passos lentos ao hotel. Um pouco de leitura completou a noite, cujo silêncio podia ser ouvido; apenas algum guapeca latia de vez em quando.

Durante a viagem pegamos calor intenso, chuvas fortes e chuviscos, frio e ventos gelados. À medida em que subíamos a Serra e nos afastávamos do Litoral, tudo mudava: paisagem, vegetação, clima, vestimentas, comidas, sotaques. E isso num percurso de pouco mais de 300 km. Santa Catarina é um arquipélago de diminutas nações!

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No dia seguinte, pelas 9,00h, seguimos para Calmon, desta vez no táxi do senhor Alevi Antônio Dalmass, recomendado pelo hotel e velho conhecedor daqueles ínvios. Nosso carro ficou na garagem, poupando-se dos 32 km de pedras e buracos da estrada carroçável, por ironia denominada “Estrada da Amizade.” Levamos cerca de duas horas para fazer um trajeto tão curto, e só chegamos ao destino graças à perícia do motorista, ainda mais que chovia muito e o chão estava liso. Logo que saímos, comecei a rever lugares familiares: a Serraria Queimada, a encruzilhada de São João de Cima, o mata-burros da fábrica de pasta mecânica Homerich, o portão da fazenda de meu amigo João Driessen, a serrinha da usina velha, o cemitério onde vi fogo-fátuo pela única vez na vida, morros, matarias, lagoas e, afinal, a entrada da cidade. Tudo bem familiar. Muitos lugares pareciam iguais, imutáveis, indiferentes ao longo tempo decorrido.

Logo no começo da Avenida Manoel Fortunato, João Batista Ferreira dos Santos, o JB, líder do “Grupo Resgate”, nos esperava diante da casa onde reside, preocupado com o mau tempo e as condições da estrada. Entramos no escritório, examinamos muita coisa, inclusive a caixa de munições que encontraram (trouxe comigo duas balas de fuzil), conhecemos Mauri, o “braço direito” de JB, e a família deste. Tiramos fotos. Dei entrevista para a “Rádio União”, da cidade paranaense de União da Vitória, que foi transmitida mais tarde, quando almoçávamos na casa do amigo Neri Gregório. Fizemos outra entrevista, esta para os arquivos e o jornal do próprio grupo, também denominado “Resgate.” É curioso observar que conheci Manoel Fortunato, que dá nome à avenida. Carroceiro e dono de bar nas proximidades,  é personagem de contos meus. Entregamos a JB os livros e presentes que levamos e saímos pela cidade.                           

Percorremos toda a cidade, visitando a última casa onde minha mãe e meu padrasto residiram, bem conservada (as outras não existem mais), locais que eu costumava freqüentar, ruas, obras, construções. A cidade cresceu, muitas construções novas surgiram. Visitamos, em seguida, a estação ferroviária, em outros tempos o local de encontro das pessoas, ali reunidas para acompanhar a passagem dos trens de passageiros. Como as outras, está entregue ao abandono, vítima da intempérie, deteriorando-se, ocupada por pessoas desconhecidas. Nos vãos da plataforma de pedra-ferro e no pátio em derredor o mato campeia livre. No próprio pátio foram erguidas casas. Placas com o nome da estação, altitude e distâncias desapareceram (queimadas nos fogões?) ou estão apagadas. Não há vidros nas janelas. Os imensos barracões que se enfileiravam à margem dos trilhos desapareceram. E até o monumento erigido nas proximidades está abandonado. Enfim, um panorama desolador e que me oprimiu o coração. Diante dessas situações, tão freqüentes, e apesar do meu patriotismo talvez ingênuo, chego a descrer deste país e de seus homens.

Seguimos, então, para a Câmara Municipal (a cidade tem nove vereadores). Fomos recebidos por diversas pessoas, pelos vereadores Santino Koch e Ademar Boff (este natural de Campos Novos) e funcionários, num plenário bem instalado, onde todos falaram sobre minha visita e minha obra, acentuando meu esforço na divulgação das coisas locais e da região. Todos pareciam felizes com a minha presença e falavam com sinceridade. Recebi na ocasião uma placa que conservarei com carinho entre meus guardados, com os seguintes dizeres:

“O Grupo Resgate tem a honra de homenagear
o escritor ENÉAS ATHANÁZIO pelos serviços
prestados em prol da cultura de Calmon e região
do Contestado. Calmon/SC, 15 / janeiro / 2002.”

Agradeci, emocionado.

Dali, fomos à casa de Neri Gregório, ex-vereador e meu conhecido desde a infância, onde nos ofereceram lauta churrascada com carne de gado, de porco, de ovelha e de frango, conforme o gosto do freguês, além de inúmeros acompanhamentos, tudo naquela fartura típica da região. Estavam presentes o próprio Neri, Oclides Serafini, Ademar Boff (cujo irmão, Alcides Boff, também camponovense, foi o primeiro prefeito de Calmon), vereadores e outros amigos com as respectivas famílias, além dos incansáveis JB e Mauri, que tudo filmavam e fotografavam. O “papo” correu solto, revolvendo com saudade um passado distante. Após o almoço, improvisamos um lançamento, tendo eu autografado muitos exemplares de meu livro “O Cavalo Inveja e a Mula Manca.” Com os estômagos repletos e as almas lavadas, partimos para novas andanças.

Visitamos, em seguida, o Zezé Bendlin, meu antigo companheiro de andanças e caçadas, em seu sítio nas cercanias. Ele fechava uma porteira, acompanhado de inseparáveis cachorros, e eu o reconheci de longe: apesar dos anos, guardava o mesmo sorriso largo. Tão logo me viu, naquela franqueza própria do caboclo, exclamou:

-Bah, Inéias, como você tá véio!
Depois, caindo em si, tentou consertar:
-Quer dizer, nóis tamo véio!

Mesmo com tão cordial recepção, a conversa foi agradável e ele revelou satisfação ao me ver. Tiramos umas fotos e seguimos, que o céu cinzento prometia.

Com mais vinte quilômetros de buracos e pedras, entramos em Matos Costa, a antiga São João dos Pobres, onde pereceu o corajoso capitão Matos Costa na “Guerra do Contestado”, num dos episódios mais tristes do conflito, porque ele foi um pacificador e compreendia muito bem os revoltosos, pelos quais nutria simpatia. A vila foi, no início, um reduto de negros, e só mais tarde entraram outras etnias. Nos meus tempos de Colégio era o “ponto de café” para os passageiros dos trens e ali se comia um bolinho da graxa que deixou saudades. Andamos pela cidade, visitamos os amigos Dico Fagundes e esposa, fazendeiros na região, velhos conhecidos de minha família. Fomos à Câmara Municipal e, na saída, me deparei com outro camponovense, o Ernesto Pasquali, antigo morador da Barra do Leão, no interior de Campos Novos. Camponovense é como italiano: tem em qualquer parte do mundo!

Retornando, visitamos Oclides Serafini, em sua “Fazenda Serra do Bugre”, ao pé da lendária Pirambeira, avistada em toda sua beleza da área da casa, com a mataria inceira e suas campinas, recortada contra o céu azul.  Local muito agradável, bem cuidado, uma morada acolhedora, onde o bom “papo” rolou. A fazenda conserva muita mata nativa, pássaros e animais silvestres em quantidade. Avistam-se veados, de vez em quando, tatus e bugios que vêm gritar nas proximidades. Ela revela uma família caprichosa e dedicada. Tanto Oclides como a Pirambeira são personagens meus. Ele parecia o mais emocionado com minha visita. Clidão, grande no tamanho e no coração!

Em Calmon, chegou a hora das despedidas. Trocamos abraços e promessas de novas visitas. Constatei com satisfação que JB e Mauri são benquistos e respeitados. Depois, pulando sobre pedras e buracos, retornamos a Caçador, onde chegamos pelas 19,00h. Retomamos as andanças pela cidade, jantamos no “Restaurante Pastelão”, e nos recolhemos para descansar e absorver tantas sensações concentradas num só e único dia.

Foi um dia repleto!

A região tem áreas enormes cobertas com reflorestamento de “pinus eliotti”, essa floresta exótica tão combatida pelos ecologistas. As áreas de vegetação natural estão ficando cada vez mais raras, é um mar de “pinus.” As opiniões sobre o assunto, na região, se dividem. Existem os que afirmam que essa árvore, ao contrário do que se diz, não estraga a terra, embora todos reconheçam, a uma voz, que nela a fauna nativa não sobrevive. Nem os bichos, nem os pássaros, nem os répteis, nem os insetos. O que irá acontecer, só o futuro dirá.

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Na manhã seguinte, dia 16 de janeiro, uma quarta-feira de  sol aberto, muito cedo, eu já mateava e proseava no saguão do hotel. Descobri ligações com conhecidos, tive notícias de outros e fui informado de muita coisa mais recente sobre a cidade e a região.

Deixando com pena o conforto do velho “Ronda Hotel”, fui até a “Rádio Caçanjurê”, uma das emissoras mais antigas do Estado, onde o radialista Joair, conhecido de longa data, pedia minha presença para uma entrevista. Ele já vinha anunciando que eu andava por lá. Fizemos uma entrevista longa, falando de minha obra e recordando passagens de minhas antigas visitas à cidade.

Fomos, em seguida, à Universidade do Contestado (UnC), em cujo “campus” de Canoinhas eu lecionei durante vários anos na época em que fui Promotor de Justiça naquela cidade. Soube que a Biblioteca Central possui quase todos os meus livros, diversos deles bem manuseados, e no painel está um “release” sobre o destaque que recebi da revista “Literatura” (Brasília).

Chegou, então, o momento de deixar a cidade e iniciar o retorno, agora por outro caminho. Fomos saindo devagar no rumo da BR 116, pela qual subimos na direção norte. Fizemos uma longa escala em Monte Castelo, curiosa cidade de colonização polonesa/ucraína e um dos centros de maior produção de erva-mate, nos ricos tempos do “ouro verde.” Plantada no alto, o horizonte se abre para todos os lados, a perder de vista, em campos e matos verdejantes. Seu nome homenageia os expedicionários brasileiros que lutaram na Itália. Monte Castelo é o lugar ideal para quem deseja uma tranqüilidade que desapareceu em quase toda parte.

Almoçamos no conhecido “Restaurante Matinhos”, amplo e confortável, deixamos de lado a cidade de Mafra e iniciamos a descida da Serra, passando por Rio Negrinho, São Bento do Sul, Campo Alegre e Joinville, retomando a BR 101. Chegamos em Piçarras para rever o “Meu Chão”, cuja reforma está quase pronta. A Estrada Dona Francisca, no sinuoso trecho da Serra, foi reformada, iluminada e ajardinada. Ficou uma estrada turística, embora perigosa. E o “Meu Chão” está ficando lindo, e ficará ainda mais quando tremular no mastro a bandeira do “Contestado”, branca e com uma cruz verde, feita pela Jandira. Por volta das 18,00h chegávamos ao nosso prédio, em Balneário Camboriú.

Depois de cinqüenta anos de luta, Calmon conseguiu passar para a jurisdição da comarca de Caçador, mais próxima e com a qual tem mais afinidades. A Justiça demorou a enxergar!

A região do “Contestado” está empobrecida. O homem de lá vem lutando pela sobrevivência num clima bravo e hostil. A multinacional e suas sucessoras sugaram o que havia de melhor e deixaram atrás de si um rastro de devastação, montanhas de serragem e aleijados de serrarias. Apesar do esforço desse povo guerreiro, a região nunca se recuperou, e vive no mais completo abandono por parte dos governos. É um povo catarinense por amor à terra, o mais catarinense dos catarinenses, que lutou até o fim contra a invasão nacional e estrangeira. Santa Catarina, decididamente, não o merece! A exploração aconteceu com o beneplácito de governos e políticos, tendo o poderoso Assis Chateaubriand e sua cadeia de jornais como advogados de Percival Farquhar.

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Notas:

(1)                            Sobre Caçador, Matos Costa e Monte Castelo, v.
“História de Santa Catarina”, Curitiba, Grafipar, Vol. IV, 1970.
(2)                         Sobre o itinerário percorrido e as demais cidades,   
v. “Guia 4 Rodas – Brasil”, S. Paulo, Editora Abril, 1999.
(3)                         Sobre a ligação de Chateaubriand com Farquhar, v.
“Chatô, o Rei do Brasil”,  de Fernando Moraes,
S. Paulo, Cia. das Letras, 1994.

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BALNEÁRIO CAMBORIÚ, 20 de janeiro de 2002.

         

(05 de julho/2008)
CooJornal no 588


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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