28/06/2008
Ano 11 - Número 587


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

BASTIÃOZADA

 

Em minha mais recente visita a Calmon, o epicentro do “Contestado”, acompanhado de minha mulher e alguns amigos, visitei uma fazenda situada nos campos de São Roque, os mais lindos da região, nas cercanias da antiga estação ferroviária de General Dutra. Tão logo o carro se aproximou, ouviram-se os costumeiros latidos da cachorrada e surgiu o capataz, muito solícito, tratando de abrir a porteira para nossa entrada. “Vamos chegando, vamos chegando!” – repetia ele, enquanto o motorista manobrava. Apresentado por um dos acompanhantes que já o conhecia, percebi logo que estava diante de um raro espécime de uma fauna em extinção – o capataz de fazenda à moda tradicional.

Trajava roupas muito velhas, remendadas em vários pontos, autênticos molambos. Cobria-se com um chapéu de cor indefinida, cujas abas faziam a costumeira virola para cima. Falava em voz grossa e gesticulava muito, tudo fazendo para agradar aos visitantes, satisfeito com as visitas que vinham tirá-lo, ainda que por pouco tempo, da solidão que compartilhava com a mulher. Falante e disposto, foi logo contando que seu nome havia caído no esquecimento, substituído pela alcunha de “Bastiãozada”, aplicada por algum gaiato em tempos que iam longe. Significava, foi explicando, que ele sozinho valia mais que um “Bastião”, talvez mais que dois, três, uns par deles, por isso considerado “Bastiãozada.” Riu com visível prazer, divertido com a história. Senti que ali estava uma figura viva, em carne e osso, fugida dos meus contos, mais perfeita que na melhor ficção. Eu estava frente a frente com um de meus personagens.

Com a costumeira hospitalidade daquele povo, conduziu-nos à sua casa, alojando-nos na cozinha, ao redor do fogão de lenha. Apresentou-nos à mulher, ofereceu café, água fresca, chimarrão. E foi contando logo, sem guardar segredo, que ganhava muito mal, uma miserinha, não permitindo o patrão que mantivesse no campo sequer uma rês de sua propriedade, cabras, ovelhas ou mesmo galinhas. Quando precisava ir à cidade para as compras, fazia o percurso a cavalo, pois o dono não permitia o uso do pequeno trator, o que tornaria a viagem mais fácil e rápida. Em compensação, relatou, o serviço era muito, demasiado para uma só pessoa. “Uma serviçama sem fim! Trabalho do raiar do dia até a noite” – informou o capataz, cujas mãos grossas enfatizavam a afirmação. A pobreza de suas roupas em frangalhos e da casa onde vivia tornavam, a rigor, desnecessárias essas explicações; elas entravam pelos olhos, à primeira vista.

Após nossas andanças por ali, nos despedimos dele. Fechou a porteira e ficou observando o carro que se afastava, talvez sonhando com o dia em que pudesse partir para uma vida melhor. Pensando cá comigo, enquanto o carro varava os campos verdes, banhados de sol e varridos pelo vento fino, concluí que ali estava um homem em condição similar à de escravo, em pleno Século XXI. Executava serviços que exigiriam diversas pessoas, recebendo salário miserável e sem a menor possibilidade de progresso, uma vez que não podia criar ou plantar para si, enquanto o latifundiário, morando em cidade distante, enriquecia sem esforço. Caso típico de exploração do homem pelo homem, praticado às claras e à vista de todos, como incontáveis outros em todos os recantos do país. E aqui em nosso Estado, apontado como um dos melhores.
Pobre “Bastiãozada”!



(28 de junho/2008)
CooJornal no 587


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC

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