07/06/2008
Ano 11 - Número 585


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

MIGUEL CALMON, AINDA
Uma figura ligada à nossa História


 

Miguel Calmon du Pin e Almeida é figura ligada à nossa história, ainda que de forma indireta, justificando meu interesse por ele, as leituras que fiz e um ou dois artigos a respeito. Nessas leituras, no entanto, incluindo a biografia oficial, traçada por seu sobrinho e secretário, o Prof. Pedro Calmon, muitas questões não são abordadas e perguntas importantes não encontram resposta.  Quando menos se espera, porém, eis que novas informações aparecem, merecedoras de um comentário adicional.

Assim acontece, por exemplo, no livro “De Catanduvas ao Oiapoque – O martírio de rebeldes sem causa”, de autoria do jornalista e historiador paranaense Milton Ivan Heller (Letras Contemporâneas – Florianópolis – 2007). Com base em intensas pesquisas e vasta bibliografia o autor reconstitui todo o curso da Revolução de 1924, liderada pelo general Isidoro Dias Lopes, dentro do território paranaense, até a resistência e capitulação dos rebeldes em Catanduvas, nas proximidades de Guarapuava, momento em que a Coluna Prestes se desligou do grupo para seguir seus próprios passos. Participaram dos eventos soldados da Polícia Militar de nosso Estado e voluntários catarinenses que constituíam os chamados “batalhões patrióticos.”

Os vencidos, famintos, esfarrapados, exaustos, muitos deles feridos ou doentes, são forçados a caminhar até a cidade de Irati, distante cerca de 100 quilômetros, e dali, em vagões cargueiros, são levados ao porto de Paranaguá, onde foram embarcados em navios com destino ao Amapá, mais precisamente à colônia “Clevelândia do Norte” ou “Colônia Agrícola de Cleveland”, assim batizada em homenagem ao presidente Grover Cleveland, dos Estados Unidos, que servira de árbitro na questão de limites Acre/Bolívia.  Nesse local isolado e remoto a grande maioria acaba perecendo, vítima de maus tratos, doenças, abandono e fugas desesperadas pela mata virgem. Em certo período os óbitos chegavam a doze diários. Instituída com o objetivo de desenvolver a região e, ao que parece, estimulada por Henry Ford, visava também a produção de borracha em larga escala e na época da chegada dos revoltosos estava em franca decadência, uma vez que o industrial americano já dera início ao plantio de seringueiras em outras regiões da Amazônia. Nela se misturavam delinqüentes de todos os tipos, mendigos, andarilhos, retirantes da seca nordestina e os revolucionários vencidos.

Entra em cena, então, o ministro da Agricultura da época, Miguel Calmon, que se vê envolvido em acesa polêmica. Como a referida colônia se vinculava à Pasta de que era titular, ele foi acusado de ser o autor da idéia de exilar os revolucionários derrotados para aquele local infecto, verdadeiro desterro ou degredo, como que condenando-os à morte – segundo a imprensa.

As críticas também atingiram o presidente Artur Bernardes, chefe do governo. Defendendo-se, afirmava ele que as acusações eram absurdas e que acatara a proposta do ministro da Agricultura, Miguel Calmon, “que indicou a colônia para detenção, declarando ser local salubre.” Parece-me que pretendeu eximir-se, lançando a responsabilidade nas costas de seu auxiliar. Segundo os jornais, ele acusava o ministro de haver inventado a infernal colônia, isentando o governo de responsabilidade, Calmon se defende, afirmando que a malfadada instituição fôra criada em 1920, quando ele não exercia a função de ministro. Insistiu na afirmação de que a colônia estava bem instalada, com recursos para fornecer alimentação abundante e hospital aparelhado. Declarava que só os presos comuns tinham que trabalhar, recebendo cigarros e remuneração simbólica, sendo proibidos quaisquer maus tratos. Dizia ainda que os rebeldes haviam levado para lá os germes da disenteria bacilar, mal que causou mortes mais numerosas que as doenças locais. Concluía dizendo que havia indicado a colônia porque outros presídios situavam-se em locais onde os rebeldes poderiam amotinar-se ou em Estados cujos governadores rejeitavam a presença deles.

A imprensa e os depoimentos, no entanto, lançavam sérias dúvidas sobre essas informações. Quando explodiu a notícia de que o governo mantinha um “campo de concentração” em plena selva, a opinião pública reagiu indignada. A chegada ao porto do Rio de Janeiro do navio “Baependi”, trazendo a primeira leva de desterrados, foi deveras chocante. Pareciam “mortos vivos” e os depoimentos dos sobreviventes emocionaram a população. Nunca se vira nada igual; nunca se cometera tamanha indignidade contra tantos inocentes – repetia a vox populi. “Estarrecido e humilhado o país se cobre de vergonha e de luto”, dizia o influente “O Jornal”, líder da Cadeia Associada, de Assis Chateaubriand, considerando “o desterro um crime que merece a execração universal.” A censura à imprensa e o estado de sítio haviam mantido em segredo, por longo tempo, os escabrosos fatos sobre os quais caiu pesada cortina de silêncio – como diz o autor.

Esse episódio nunca bem esclarecido e que Milton Ivan Heller tudo fez para reconstituir gera séria dúvida sobre atos de Miguel Calmon quando ministro da Agricultura. É possível que sua defesa seja procedente e tivesse agido na melhor boa fé, como novas pesquisas e estudos poderão esclarecer. Seria lamentável que essa nódoa permanecesse incólume na biografia de quem batalhou pela construção das ferrovias em nosso Estado, sendo homenageado como patrono de uma de nossas cidades – Calmon. 



(07 de junho/2008)
CooJornal no 584


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC