19/04/2008
Ano 11 - Número 577


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

A CIDADE NASCEU DA FÉ
 

Nascem as cidades de variadas circunstâncias. Algumas surgem por acaso, outras por necessidade e umas poucas são até planejadas. Poucas, porém, nascem da fé de uma única pessoa, como aconteceu com Bom Jesus da Lapa, à margem do rio São Francisco, cuja gênese foi descrita de forma ficcionalizada pelo escritor piauiense William Palha Dias. Depois de muitas buscas e pesquisas, ele publicou a novela de fundo histórico “Inusitado Peregrino” (Edição do Autor – Teresina – 2006), em que procurou reconstituir em detalhes o curioso nascimento dessa importante cidade. Embora os elementos informativos fossem poucos, além de muito distanciados no tempo, impedindo uma consulta às fontes primárias, o livro ganhou forma e conteúdo, transformando-se numa obra de leitura agradável e importante documento de um episódio pouco versado nas letras e que se relaciona com uma cidade querida pelos incontáveis romeiros que a visitam em busca de ajuda espiritual ou por mero ato de fé. Como diz, o autor, o relato se fundamenta “em fragmentos históricos e laivos de oralidade popular existentes no vale do rio São Francisco. Não foi tarefa fácil – prossegue ele - engendrar em narrativa, mesmo curta, acontecimentos tão distantes, guardados apenas em comentários orais ou sob a condição cordelista...” (pág. 9). Essas fontes são a voz do povo e, segundo o velho brocardo, vox populi, vox Dei, de forma que está o autor em boa companhia e, com certeza, seu relato é bem próximo da verdade histórica, pelo menos nas linhas básicas, em que pese o acréscimo de alguns detalhes talvez inverossímeis inventados pela mística popular. Mas são esses detalhes, em tantas obras, que lhes dão vivacidade e sabor humano, distanciando-as dos relatos frios da história convencional.

Tudo teve início quando o penitente Francisco Mendonça Mar, convertido às práticas religiosas da irmandade, em São Salvador, na Bahia, estimulado por visões que lhe surgem em sonhos, decide partir por “um mundo sem fronteiras”, orientado apenas pela fé e indiferente ao que pudesse acontecer. Queria se afastar de um ambiente de ambição e ganância que feria sua pureza de crente e o desagradava de forma visceral. Com o alforge às costas e imenso crucifixo sobre os ombros, parte em busca do local onde plantaria em definitivo a cruz que transportava com sacrifício e a própria morada. Iria em busca da gruta que lhe aparecia em sonhos, a “grande furna onde pretendia pôr em evidência as tendências de anacoreta que o embalavam” (pág. 16). Enfrentando todos os obstáculos naturais, afundou no sertão, vencendo morros e descidas, rios e vales, planícies desertas e mataria fechada, buscando desviar-se dos índios, dos estradistas e plantadores de currais, sem falar nos animais selvagens que povoavam a inóspita região. Por volta dos oitenta dias de andanças consegue com habilidade obter a tolerância dos índios que o viam como invasor e a amizade de um felino que passa a acompanhá-lo e defendê-lo. Depois de jornadas e aventuras sem fim, superando o medo, o cansaço, a fome e a sede, alcança o local de seus sonhos – a Lapa. Ali inicia suas pregações, não tardando o ajuntamento de crentes que vão formando, aos poucos, o núcleo da futura cidade. Nas proximidades começam a surgir jazidas auríferas. Ao contrário do que costuma acontecer em casos semelhantes, a igreja oficial o reconhece como apto a exercer as funções de cura e, em curto espaço de tempo, é ordenado. Torna-se o vigário do templo da Lapa, padre Francisco da Soledade, vivendo no local pelo resto da existência, entregue à sua fé e ao serviço de Deus. Cercado de crentes e santificado pela fé popular, ali foram depositados seus restos mortais. As romarias crescem, a cidade ganha em importância e as histórias relacionadas à sua fundação e ao seu cura são variadas e ricas em elementos da imaginativa do povo. Por tudo isso e muito mais, a novela de Palha Dias merece leitura. Prende o leitor até o fim, revelando um dentre tantos episódios curiosos em que é pródiga a vida brasileira.




(19 de abril/2008)
CooJornal no 577


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC