23/02/2008
Ano 11 - Número 569


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

O VELHO CHICO

 

Até que enfim conheci de verdade o Velho Chico. Naveguei nas suas águas, cruzei a imensa ponte que o atravessa, molhei nele os pés e as mãos. É claro que, como todo mundo, eu o conhecia de longe, varando-o em outras pontes ou voando por cima dele. Era como pessoa que a gente encontra vez por outra, reconhece a fisionomia, mas com quem nunca trocou palavra ou aperto de mão. Creio que assim é, em relação a ele, a grande maioria dos brasileiros.

Estou me referindo, como já deu para perceber, ao rio São Francisco, o chamado rio da unidade nacional, único grande rio nacional que corre do sul para o norte. Nascendo em São Roque de Minas, na Serra da Canastra, banha os Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, em cuja divisa escoa no Atlântico. Com 2.700 km de extensão, recebe 36 afluentes, serve a 15 milhões de pessoas e sua bacia ocupa 7,52% do território brasileiro. Cruza montanhas, planaltos, planícies, estreitos, cerrados, agreste e caatinga. Vai de profundidades tenebrosas a remansos orlados de “coroas.” E, para completar, gera 95% da energia consumida na região. Convenhamos que é um patrimônio de atiçar a cobiça das mais ricas nações.

Não bastasse isso tudo, é um manancial inesgotável de história e folclore, inspirando a música, a literatura, o cordel, a culinária, a arte e o artesanato popular. Pela sua corrente singraram os navios gaiolas, em cujas proas se colocavam as terríveis carrancas para afugentar os maus espíritos que vagam pelo mundo para perder as almas. Nesses navios, acomodados em redes balouçantes, os sertanejos faziam longas e pachorrentas viagens. A pescaria, tão abundante no passado, foi o ganha-pão de incontáveis gerações. Represado em Sobradinho,fez o sertão virar mar, como na canção, inundando inacreditável porção de terra seca, até então imprestável, onde só medravam o xique-xique e o mandacaru. A impressionante muralha de concreto formou um mar interior, maior que muito mar existente pelo mundo afora, alterando o clima, a umidade do ar, o lençol freático, a densidade das chuvas. Onde o sol tudo calcinava, o verde se espalha a perder de vista, venta como à beira-mar, chove a cântaros, e produz. Produz frutas da melhor qualidade, líderes em exportação: uvas, mangas, abacaxis, bananas – tudo levado com avidez para além das fronteiras. Sem prejudicar a navegação, com as embarcações subindo e descendo pelas eclusas.

Numa das margens, a pernambucana Petrolina; na outra Juazeiro, a baiana, ligadas pela monumental ponte Presidente Dutra, por ele inaugurada, com seus dois arcos inconfundíveis. A primeira, plana e espalhada, é centro turístico, artesanal e estudantil. O artesanato de Mestre Quincas e de Ana das Carrancas, famoso, corre mundo. As carrancas de Ana trazem os olhos vazados, numa insólita homenagem ao marido, cego de nascença. Não se esqueça o “bodódromo”, bairro onde se concentram restaurantes especializados em carne de bode, em cuja entrada erigiram imensa estátua ao caprino. Em Juazeiro, antiga e típica cidade sertaneja, a cozinha na base do peixe é o forte. Por toda parte, aonde se vá, estão as carrancas, os cantadores, os ambulantes que apregoam de tudo, a alegria de uma gente jovial e acolhedora. Ligando as duas cidades, na travessia do Velho Chico, vão as lanchas, imensas, cheias, alegres, barulhentas, verdadeiras feiras flutuantes. Pela janela de uma delas, a “Santa Maria”, contemplei as águas azuis do grande rio e imaginei os segredos que ele esconde.

Ah! se o Velho Chico pudesse falar!




(23 de fevereiro/2008)
CooJornal no 569


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC