29/12/2007
Ano 11 - Número 561


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

LIMA BARRETO E O FEMINISMO

 

Escrever sobre AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO (1881-1922), por duas razões fundamentais, é ambiciosa empreitada. Uma, porque sobre ele já se manifestaram, em alentados ensaios, os mais representativos nomes da crítica brasileira; outra, pela dificuldade na escolha do âmbito a abordar tão complexa figura humana e literária: ficcionista, cronista, crítico, pensador, simples cidadão. Não sejam esses, porém, os entraves, já que é necessário e justo estudá-lo sempre e sempre.

O escritor carioca teve vida breve e marcada pela infelicidade. Perdeu a mãe na meninice, o pai ensandeceu para sempre, não obteve o pergaminho da Escola Politécnica e acabou seus dias entregue ao mais desbragado alcoolismo. O que não o impediu, no entanto, de erguer uma obra monumental.

Duas verdades se evidenciam em relação a ele. O erro de julgamento de seus contemporâneos, que nele viam o mulato talentoso mas destabocado, ébrio e sujo, constante freqüentador das tascas mais imundas, a exibir os seus andrajos para escândalo dos elegantes da Rua do Ouvidor e em cuja boca punham as mais pornográficas anedotas e maledicências. A segunda, que ressalta de seus livros, especialmente do “Diário Íntimo”, é a imagem do intelectual preocupado com a arte literária, o destino da literatura, a produção de algo autêntico e novo nas letras brasileiras. O cidadão com os olhos abertos para a nossa realidade, o jurado independente, o homem de profunda honestidade, a ponto de, já nos últimos dias de vida, escrever angustiado a um amigo para que lhe saldasse dívida insignificante.

Lima Barreto teve enorme dificuldade para editar-se. Os raros editores existentes só lançavam medalhões, o que impedia o aparecimento de novos. “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” foi impresso em Portugal, para onde fôra levado pelo grande amigo Antônio Noronha Santos, jornalista fluminense. Suas “Obras Completas”, hoje compostas de dezessete volumes, tiveram vários deles publicados em edições póstumas, graças ao paciente trabalho de seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa, autor do extraordinário livro “A Vida de Lima Barreto.”

O romance limano causou estardalhaço nos meios intelectuais da época. Quando líamos os franceses, comíamos pelo menu parisiense, vestíamos pelos figurinos da França, copiávamos os seus autores e absorvíamos a influência gaulesa a ponto de considerarmos a França como segunda pátria, surge um mulato suburbano, escrevendo de um modo desleixado e personalíssimo sobre coisas, fatos e gentes nacionais. Pior: retratando de modo semicaricatural pessoas gradas de um famoso jornal, reconhecíveis com facilidade, mesmo sob a capa de personagens. A reação se manifestou pelo ataque virulento ou pelo silêncio significativo e cauteloso.

Classificaram-se as suas obras como romans à clef, destinados apenas à promoção de sensações imediatistas. Os tempos mostraram, entretanto, que, mesmo com o desaparecimento dos modelos, as personagens continuam vivas, como acontece nas verdadeiras obras literárias. E a crítica demonstrou que tais romances só não constituem pura ficção para quem lhes conhece os modelos.

O contista e o romancista Lima Barreto já têm sido bem estudados. O seu enquadramento como um dos mais expressivos pré-modernistas é indiscutível. Precisa ser lembrado, agora, como crítico literário e de costumes. A análise que fez, de centenas de livros, é um manancial infinito para quem deseja desvendar nossa evolução nas letras. A maneira lúcida com que descreveu os nossos costumes – notadamente no reino da política – é excelente, não apenas pela verossimilhança, mas também pelo agudo senso de observação.

Decorridos mais de oitenta anos de sua morte, Lima Barreto está vivo. Quando acicatado pelo seu modo de vida, tinha razão ao desabafar: “Que me importa o presente? No futuro é que está a existência dos verdadeiros homens!” Ele sentia, no início do século passado, que a crítica o sagraria como o maior e o mais brasileiro dos nossos romancistas.

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Lima Barreto não se considerava um feminista. Mantinha até uma posição de aparente anti-feminismo, fato que seu grande biógrafo Francisco de Assis Barbosa acentuava como uma das sérias contradições do escritor carioca (1). Não poupava ele as líderes do movimento, dividido em várias facções, especialmente Deolinda Daltro e Adalberta (Berta) Lutz, a quem criticou em inúmeros artigos publicados na imprensa. A primeira delas, como lembra Assis Barbosa, “aparece em ‘Numa e a Ninfa’, no papel de Dona Florinda Seixas, promovendo passeatas com os seus índios” (2). O tratamento dispensado à idealista senhora é dos mais irônicos e há momentos em que ela e os seus índios chegam às raias do ridículo, em especial nas cenas da aula pública de guarani e nos préstitos fúnebres “votivos e comemorativos” por ela organizados.

Na verdade, porém, investindo contra o movimento, Lima Barreto pretendia tomar a defesa da mulher. “Paradoxalmente, – escreveu Assis Barbosa - Lima Barreto tomaria a defesa da mulher nessa campanha contra o feminismo” (3). E essa conclusão se justifica, uma vez que os propósitos do feminismo nacional, com suas várias correntes, eram tão pequenos que não representavam de fato uma ação válida em favor da mulher. Ela, afirmava Barreto, merecia muito mais.

As questões feministas e a situação de inferioridade da mulher brasileira preocuparam, em inúmeras ocasiões, o espírito de Lima Barreto. Seus artigos sobre tais temas são muitos e estão incluídos nos volumes “Bagatelas”, “Impressões de Leitura”, “Vida Urbana” e “Coisas do Reino de Jambon”, sendo este último o que reúne o maior número deles. Examinando-as, procuremos estabelecer a real posição do escritor e os aspectos por ele versados.

Lima Barreto, na agudeza de suas observações, considerava o nosso feminismo da época absolutamente falso. Era, como dizia, “um feminismo burocrático.” O que deseja não é “a dignificação da mulher, não é a sua elevação; o que ele quer são lugares de amanuenses com cujos créditos possa comprar vestidos e adereços, aliviando nessa parte os orçamentos dos pais, dos maridos e dos irmãos” (4). Sente o leitor que Lima Barreto parecia nutrir maior simpatia pelas mulheres estrangeiras, em especial as européias, capazes de lutar por conquistas realmente significativas na época e marcar com mais nitidez a sua presença na vida intelectual. A crônica “A Mulher Brasileira” parece ratificar tal impressão (5). Mas essa posição, no entanto, deveria ser fruto das irritações momentâneas em face “dos berreiros de Dona Berta e dos escândalos de Dona Daltro”, que ele julgava incapazes de distinguirem as autênticas bandeiras do feminismo.

Essas bandeiras, para ele, haviam sido esquecidas, razão pela qual não perdia oportunidade de apontar as reivindicações capazes de levar à verdadeira emancipação da mulher.

Quando se discutia a admissão das mulheres em certos serviços públicos, anotava Lima Barreto que frente às leis de então “a mulher é mais ou menos equivalente ao louco, ao menor, ao interdito. Está sempre debaixo de tutela e proteção de quem ela carece irremediavelmente. Quando se promulgou a Constituição de 24 de fevereiro, foi com esse espírito que se disse que os cargos públicos eram acessíveis a todos os cidadãos brasileiros: mas ‘brasileiros’ aí são homens, conforme o espírito da época.” A ninguém ocorrerá julgar a justeza dessas palavras, retrato fiel de uma situação que só há pouco tempo começou a mudar. Concluindo pela inexistência de lei que autorizasse o acesso de mulheres a esses cargos, proclamava o romancista: “Não me move nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e não clandestinamente” (6).

Todas as situações que punham a mulher em posição inferior, humilhante ou injusta, encontraram pronta repulsa na obra limana. A prostituição, por exemplo. “A prostituição da mulher – escreveu – é a expressão de sua maior desgraça, e a desgraça só merece compaixão quando é total, quando é fatal e nua. Não gosto dos disfarces, das intrujices, das falsificações e, sobretudo, do aproveitamento dessa sagrada marca do destino, para ludibriar os outros. A prostituta só é digna de piedade e respeito dos homens de coração, quando ela o é em toda a força de seu deplorável estado, quando ela sabe com resignação e sofrimento arcar declaradamente com a sua tristíssima condição” (7). É o escritor apiedando-se das pobres, aquelas que o são por conjunturas sociais e econômicas.

O perdão votado pela sociedade aos maridos matadores de esposas adúlteras mereceu sempre a análise arguta e a condenação frontal. Diversos artigos, alguns deles autênticos ensaios, alinham os argumentos com que atacava semelhante concepção. “Contra um ignóbil e iníquo estado de espírito dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbaria medieval, da quase escrava, sem vontade, sem direito aos seus sentimentos profundos, e tão profundos são que ela joga, no satisfazê-los, a vida; degradando-a à condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos, com direito de vida e morte sobre ela; não lhe respeitando a consciência e a liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; - contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borrabotas feministas que há por aí...” (8).

Muitas concepções do passado – dizia ele – muito têm a ser aproveitado e contribuíram para a nossa formação. Mas devem ser encaradas com precaução à luz do pensamento e das idéias atuais, sob pena de provocarem efeitos ilógicos e absurdos, inaceitáveis. “A honra, - aponta ele como exemplo, – como todas as concepções que têm guiado as sociedades passadas, inspira atualmente muitos crimes ou os desculpa. Essas concepções não devem ser totalmente varridas de nossa mentalidade... Elas devem perder alguma cousa, em face de nossas idéias contemporâneas, sobre o mundo e o homem.”Se assim não for, servirá a honra para justificar o assassinato reiterado das mulheres pelos maridos. Ora, pergunta ele, “pode alguém hoje, desculpar ou perdoar o infame o hediondo crime que acabo de narrar, em nome da honra? Uma das sobrevivências nefastas dessa idéia medieval, aplicada nas relações sexuais entre o marido e a mulher, é a tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, então, é fatal sua absolvição, no júri” (9).

Não é possível, sustenta, “lavar a honra matando.”É um preconceito absurdo, de certa forma imposto pela sociedade ao marido traído, um meio de fugir à maledicência e reabilitar-se no meio social. O ser humano é, por natureza, mutável; está em constante alteração. Não se pode, pois, impedir que a mulher deixe de amar o marido e passe a amar outro. É um direito. “Então, - indaga Lima, - quando tudo muda, tudo varia, ela não pode nem deve variar, mudar, transformar-se, uma vez que parece ser a essência da natureza inteira de que nós também fazemos parte, a mudança?” (10).

É imperioso reconhecer o direito de amar e de deixar de amar; de casar, separar e divorciar; com facilidade, sem formalismos. Já no começo do século passado ele admitia o divórcio, numa época em que o assunto era tabu, propugnando por sua adoção, às claras, como era próprio de seu temperamento, numa solução que lhe parecia a mais indicada para os graves problemas conjugais. “Para resolvê-los, - escreveu seu inigualável biógrafo Assis Barbosa, - propunha a adoção do divórcio completo e sumário, podendo ser requerido por um dos cônjuges e sempre decretado, mesmo que o motivo alegado fosse o amor de um deles por um terceiro ou terceira” (11).

Nessas posições, inusitadas para o seu tempo, e que tanto impacto causavam, contribuindo para sua reputação de irreverente e destabocado, havia, no fundo, o arraigado sentimento de justiça, sentimento agudo e sincero que exteriorizava em quaisquer circunstâncias. Esse mesmo sentimento que o colocava na defesa feminina e o levou tantas vezes à condenação dos uxoricidas, mesmo contrariando o sentimento popular vigorante naqueles dias. “Eu não me cansarei nunca de protestar e de acusar esses vagabundos matadores de mulheres!” – exclamava ele, concluindo: - “A mulher não é propriedade nossa!” (12).

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 Notas:

(1)     “A Vida de Lima Barreto”, José Olympio, Rio, 1952, págs. 279/282.

(2)     Op. cit., pág. 279, nota 29.

(3)     Op. cit., pág. 280.

(4)     “Coisas do Reino de Jambon”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed., 1961, págs. 187 e 55; “Bagatelas”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed., 1961, págs. 173 e 29.

(5)     “Vida Urbana”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed., 1961, pág. 49.

(6)     “Vida Urbana”, cit., pág. 280. Ele se refere à Constituição republicana de 1891.

(7)     “Impressões de Leitura”, Brasiliense, S. Paulo, 2a. ed., 1961, pág. 135.

(8)     “Bagatelas”, cit., pág. 173.

(9)     “Bagatelas”, cit., pág. 168.

(10) “Bagatelas”, cit., pág. 172.

(11) “A Vida de Lima Barreto”, cit., pág. 280.

(12) “Vida Urbana”, cit., pág. 139. 




(29 de dezembro/2007)
CooJornal no 561


Enéas Athanázio,
jurista e escritor
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC