01/12/2007
Ano 11 - Número 556


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

A SALVAÇÃO DE LIMA BARRETO


 

Adquiri numa liquidação paulistana o livro “Lampião”, de Ranulfo Prata (1896/1942), com excelente prefácio de meu amigo Paulo Dantas, um clássico do assunto que andava esgotado. Escrito em 1933, no auge do cangaço, com base em minuciosas pesquisas de campo, relata em pormenores as inacreditáveis barbaridades praticadas pelo terrível “capitão” Virgulino Ferreira da Silva, seus grupos e sub-grupos, desafiando os governos federal e dos sete Estados da região. Como também desafiava a curiosidade de jornalistas, cineastas, criminalistas, sociólogos, fotógrafos e estudiosos, inclusive o escritor franco-suíço Blaise Cendrars, que ficou fascinado por esse bandido singular, e por observadores das táticas de guerra móvel em que ele foi mestre. Dois aspectos, porém, ressaltam do livro, de forma bem clara: o prestígio das teorias de Lombroso sobre o criminoso nato, ainda imperantes na época, e a onipresença da corrupção de então e de hoje, prejudicando o combate ao cangaço e contribuindo para sua sobrevivência por tantos anos.

Por outro lado, o livro me trouxe à lembrança um episódio relevante acontecido com Ranulfo Prata e Lima Barreto, escritor que muito estudei e sobre quem publiquei um livro. Como se sabe, Lima era entusiasta dos novos escritores, sempre pronto a incentivá-los e orientá-los em suas carreiras iniciais, como aconteceu, entre muitos outros, com Ranulfo, autor de livros de sucesso, como “Navios Iluminados”, “Dentro da Vida” e “Triunfo”. Médico na cidade de Mirassol (SP), ele acompanhava com tristeza a decadência física de Lima, entregue ao mais incontrolável alcoolismo, perambulando pelas tascas cariocas, sujo e maltrapilho, objeto de troças de mau gosto. Compadecido do amigo talentoso, intentou sua salvação e conseguiu levá-lo para sua cidade. Mirassol, pequena cidade paulista, arvora-se na salvadora de Lima, lá colocado em severa disciplina, sem ingerir álcool, bebendo muito leite, comendo e dormindo bem, e, por certo, medicado. Em pouco tempo a melhora foi visível, o escritor recuperou a cor natural, tornou-se menos trêmulo e engordou alguns quilos. A estação de cura mereceu um capítulo de seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, e a série de três crônicas do próprio Lima, hoje recolhidas às suas Obras Completas, publicadas pela Brasiliense.

A presença de tão célebre escritor na cidade alvoroçou a moçada local e ele foi convidado a fazer uma palestra em Rio Preto, cidade maior e vizinha. A movimentação e os preparativos foram enormes, iriam em caravana, com muitos carros e gente, para melhor exibir a celebridade. Ora, Lima era a timidez em pessoa – “tenho a alma de bandido tímido” (dizia), – deu para ficar nervoso e no dia marcado desapareceu. Procura daqui e dali, acabou sendo encontrado numa sarjeta, bêbado, quase inconsciente. O convite que tanto instigava os jovens da terra se tornou uma violência insuperável e o infeliz Lima reverteu aos braços do vício. Pouco mais de um ano depois estava morto, aos 41 anos de idade. Havia escrito uma conferência genial, que, com certeza, faria imenso sucesso – “O destino da literatura.”

 

(01 de dezembro/2007)
CooJornal no 557


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC