27/10/2007
Ano 11 - Número 552


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

NO CERRADO E NO VALE



 

Percorro o travessão entre Montes Claros e Pirapora, norte de Minas Gerais, no rumo do Rio São Francisco, o Velho Chico de tanta história e beleza. Dia lindo, de céu azul e límpido, temperatura amena e horizontes abertos. É um chão de terra vermelha, parecendo a argila de nossos campos, coberto de vegetação rasteira e poucas árvores retorcidas – o cerrado. Aqui e ali, extensas plantações de eucaliptos, únicos que vingam – diz o pachorrento motorista. Paira no ar uma secura que enxuga as narinas e os olhos ardem na claridade vibrante. Não há rios ou córregos nos primeiros trechos; eles só irão se mostrar no descambar para o vale, avultando o Rio das Velhas, cujas águas servem para irrigações que semelham nossas plantações de arroz. Com a descida, o calor aumenta.

Aqui me encontro no chão literário de Guimarães Rosa e Mário Palmério. Soltando a imaginação, avisto Riobaldo Tatarana, jagunço-filósofo, cavalgando um lubuno nestes ínvios vastos e solitários, rememorando passadas peleias e o inexplicável amor que nutre por Diadorim. Seu perfil, nítido, se desenha contra o azul do horizonte. E mal ele passa, outra figura surge pelo carreiro próximo, humilde, atarracada, curvada ao peso da mala de badulaques que leva nas costas. É Xixi Piriá, o mascate, vendendo de rancho em rancho, de porta em porta, indiferente ao sol calcinante e ao vento que requeima. Parece-me que avisto ao longe o Padre Sommer, valente caçador de onças, a descer impávido pelo coxilhão, em passo decidido, vermelhaço e suarento. Mas devo estar enganado; ele desaparece num capão redondo e fechado. As imagens, mesmo fugidias, mostram a força das letras que criam figuras tão vivas.

Descendo, o Velho Chico se anuncia, o rio da unidade nacional, com seus 2800 quilômetros, banhando vários Estados e servindo a 15 milhões de viventes. Domina soberano o vale em que está Pirapora, outrora o porto maior da navegação dos “gaiolas” que levavam gentes, mercadorias e histórias. Terra das carrancas que a tradição plantava nas proas para espantar malefícios e maus olhados. A avenida portuária, sombreada de gameleiras folhudas, é agradável e ampla. No porto, balançando de leve, grande navio de três andares está ancorado e nele penetramos, convidados pelo simpático patrão. A visita me conduz, outra vez, às letras. Num deles, enquanto dormia, Rotílio Manduca foi assassinado a facadas, essa figura de jagunço “justiceiro” que dominou a região. Bom no tiro e na faca, atribuíam-lhe duzentas mortes. Mas despia o gibão e envergava ternos de linho brilhante, exibindo-se em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, onde cultivava poderosas amizades Jagunço que venerava os intelectuais, lia os clássicos e fazia versos. E que morreu para renascer como o temível Zé Bebelo, seu modelo, nas páginas de “Grande Sertão”.

Mas a voz do motorista pachorrento corta meu enlevo. “Vamos enfrentar um surubim assado?” – convida ele, indicando o restaurante amplo e aberto, debruçado sobre o Velho Chico e sombreado por árvores centenárias, testemunhas verdes de lutas e vidas. Quem poderia resistir?

 

(27 de outubro/2007)
CooJornal no 552


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC