06/10/2007
Ano 11 - Número 549


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

DONA MADALENA


 

Duas vezes estive com Dona Madalena. A primeira, muito rápida, numa viagem ao Nordeste, ocasião em que passei dois dias no Recife. Encontrei-a no Solar de Apipucos, às voltas com visitantes, e pouco pudemos conversar, embora ela me tratasse com simpatia, alegre como sempre e revelando excelente memória.

Na segunda vez, acompanhado de minha mulher, passamos parte de uma tarde juntos. Nessa época ela morava numa casa ao lado do Solar, uma vez que este já se transformara na sede da Fundação Gilberto Freyre. Bem humorada, ela a designava como “senzala”, diferenciando-a da “casa-grande”, no caso o próprio Solar. É claro que se tratava de pura brincadeira, pois ela foi sempre entusiasta da idéia de criar a Fundação, guardiã dos pertences e da obra de Gilberto Freyre (1900/1987). Além disso, a casa nada tinha de senzala e dispunha de todos os requisitos, inclusive uma área muito agradável, na parte dianteira, em meio ao bosque de frondosas árvores verdejantes onde se situa o célebre Solar.

Em companhia dela, percorremos mais uma vez o Solar, tanto no térreo como na parte superior, observando a biblioteca, o acervo das obras gilbertianas, as condecorações, prêmios e dignidades que recebeu, os objetos pessoais e a famosa poltrona de couro onde ele escrevia, colocando uma das pernas sobre o braço, e na qual dei uma sentadinha, só para experimentar. Nessa ocasião ela nos ofereceu o último livro de Gilberto, “Ferro e Civilização no Brasil”, com a seguinte dedicatória: “Aos amigos Jandira e Enéas Athanázio, uma lembrança do Gilberto (último livro escrito por ele) e da visita à Vivenda de Santo Antônio de Apipucos. (a) Madalena Freyre, 13 de junho de 1996.”

Recebidos na “senzala”, lá conversamos muito, provamos o célebre conhaque gilbertiano, bolachas e doces caseiros, típicos da culinária nordestina. Foi então que ela nos mostrou uma curiosidade: tratava-se de um grosso álbum de capa preta em cuja face se lia em grandes letras: “WC”. Nele ela colava recortes de jornais com juízos desfavoráveis a Gilberto e sua obra, ou que assim lhe parecessem, e com um detalhe bem significativo – todos de cabeça para baixo! Manuseando o volume, encontrei artigos de figuras bem conhecidas e que, com certeza, jamais imaginariam tivessem seus escritos tão melancólico destino. Enfim, um risco de quem se abalança a opinar na imprensa. Perambulamos, em seguida, pela chácara, da qual ela tudo conhecia em detalhes, desde as árvores preferidas do marido ou plantadas por ele, flores e frutos, locais que apreciava ou marcavam algum evento, caminhos e tudo mais. Numa lojinha da entrada adquirimos lembranças do local. Foram horas inesquecíveis passadas no reduto do autor de “Casa-Grande & Senzala”, guiados por tão ilustre e simpática cicerone.

Dona Madalena de Mello Freyre, desportista na juventude, nunca imaginou ser cortejada por Gilberto Freyre, já então o mais festejado intelectual do Nordeste e um dos maiores intelectuais brasileiros. Mas soube retribuir àquele amor e foi uma companheira dedicada, zelosa do renome do marido e de sua obra científica e literária. Repousa ao lado dele, em silencioso recanto da chácara, tendo deixado muitas lembranças e saudades. Partiu de repente, quando planejávamos fazer-lhe nova visita.

 

(06 de outubro/2007)
CooJornal no 549


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC