23/06/2007
Ano 11 - Número 534


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

O OUTRO LADO DE “A BARCA DE GLEYRE”
 

Conseqüência natural da leitura de “A Barca de Gleyre” é a curiosidade de conhecer “o outro lado”, saber quem foi e o que fazia na vida o destinatário de mais de quarenta anos de correspondência literária. O próprio Monteiro Lobato, diante do sucesso desse livro, foi o primeiro a perceber o interesse que despertariam as respostas de Godofredo Rangel e muito insistiu com o mineiro para que autorizasse a publicação de suas cartas. Rangel, no entanto, recusou. Alegando que suas cartas eram apenas uma provocação para as excelentes missivas lobatianas, além de nada conterem de importante para as letras, não permitiu a publicação e, segundo informou mais tarde Edgard Cavalheiro, renovou a proibição pouco antes de morrer. Escrevendo a um correspondente catarinense, cerca de três meses antes de falecer, repetia a mesma argumentação. “Minhas cartas ao Lobato, - disse ele – as mais longas, as dos vinte primeiros anos de nossa correspondência (aliás, são as únicas que possuo), ressentem-se de uma grande imaturidade de formação. Não significariam, por isso, grande coisa para as letras. Foi ponderando esses motivos que mais de uma vez me recusei a editá-las.” Diante dessa decisão tão definitiva e do tempo decorrido, desconhecendo-se mesmo se as cartas ainda existem e qual o seu paradeiro, é forçoso nos convencermos de que “A Barca” é uma obra que jamais será completada. Não será pelas respostas de Rangel que poderemos desvendar a figura arredia de escritor e juiz que passou a vida “pulando de comarca em comarca” pelo interior das Gerais.

Restaria, assim, para melhor conhecê-lo, um mergulho na sua obra. Mas essa alternativa também não é de fácil execução – seus livros, todos publicados há muitos anos, encontram-se esgotados e pôr a mão num dos raros exemplares das pequenas edições que foram feitas é tarefa quase impossível. Sei de experiência própria, desde quando me abalancei a biografar Rangel, o quanto rareiam esses livros. Não fosse a ajuda de amigos bibliófilos, eu jamais teria conseguido reunir as obras completas do romancista.

Agora, porém, as coisas vão começar a mudar. Como escreveu o saudoso Câmara Cascudo, parece que Godofredo Rangel vai enfim voltar “ao trânsito natural das lembranças e citações” e já não será mais “o destinatário epistolar de Monteiro Lobato, mas entidade viva e comunicante nos caminhos do nosso Entendimento.” Essa tarefa ressuscitadora, que haverá de provocar a necessária reavaliação da obra rangelina, começará a acontecer com a publicação de nova edição de “Vida Ociosa” por uma editora carioca. Com esse propósito, ela volta a colocar nas mãos do público leitor o pequeno livro que deu início à carreira de Rangel, cujos originais, segundo consta, foram preparados com o maior critério, visando apresentar o texto mais confiável e autêntico a que se pudesse chegar. Para mim, que comecei a pesquisar e escrever sobre Rangel quando ele estava no mais completo ostracismo, este é um momento de rara satisfação. Espero que, em seguida, em rápida sucessão, voltem a circular os demais livros do autor, todos publicados em edições criteriosas e elegantes como espero que seja esta. Será o início da realização da justiça literária, que, embora às vezes tarde, não costuma falhar (*).

Sabem os leitores do que produziram os integrantes do grupo de “Minarete” do empenho dedicado por Rangel à composição de sua obra e especialmente deste livro. Os depoimentos informam da extrema paciência com que se entregou à tarefa, escrevendo e reescrevendo, cortando e acrescentando, batendo-se sem cansaço na “dizimação dos quês superabundantes” do texto e na busca de um estilo agradável, apto a transmitir com precisão as emoções suaves da vida interiorana, onde os grandes acontecimentos não primam pela freqüência. Homem tranqüilo, temperamento calmo e reflexivo, Rangel nunca se apressou em publicar os seus trabalhos. Só o fazia quando convencido de que era o melhor que podia dar. Observava com atenção as pessoas, os fatos e as cenas roceiras à sua volta, para convertê-las nas admiráveis páginas que escreveu. Esse esmero levou a crítica a considerá-lo um calígrafo, como o fez Antônio Cândido, que assim fechou seu magnífico ensaio sobre Rangel: “Nele se equilibram finalmente o apuro impecável do estilo, a segurança da composição, a compreensão psicológica e a coragem moral de enfrentar com decisão os aspectos pouco amáveis da vida.”

“Vida Ociosa” reflete a vida monótona de um magistrado interiorano dos começos do Século XX. Obra de fundo memorialista, de cunho autobiográfico, embora fugindo às posições e poses estudadas que o autor soube evitar com o humor suave e a ironia sutil que infundiu à narrativa. Com muito de literatura “à clef”, seus contemporâneos conseguiram identificar alguns habitantes do sul mineiro travestidos em personagens. Sitiantes da região, políticos, gente do povo, rábulas encrenqueiros, sentenciados conformistas e até o carcereiro viraram figuras de romance e povoam estas páginas de grande poder evocativo. Lugares que os tempos de progresso desfiguraram irremediavelmente estão fixados para sempre nos quadros coloridos que Rangel pintou com tanta sensibilidade.

Evidencia-se no livro, de forma indisfarçável, o conflito entre o “juiz em termos sertanejos”, sem vocação aparente, e o literato em carne viva. Para fugir a “um gordo processo de embargos” que jazia sobre a mesa, preferia a pesca nos ribeirões ou saborear pamonhas nos sítios das redondezas e lá embeber-se de sensações com que encher laudas. Há algumas passagens que registram o desabafo do escritor por inclinação contra o serviço estafante do magistrado que era obrigado a ser por questão de sobrevivência. O escritor sentia ganas de lançar pela janela os autos sebosos que o juiz teria que julgar e entregar-se de todo à literatura. Mas o livro, no mais, é tranqüilo como o próprio autor. Trabalhado, seguro, límpido. Foi composto com calma, sem premências de tempo, como se Rangel dispusesse da própria Eternidade, e sem preocupações com críticos e leitores.

Aparecendo em livro no ano de 1920, em edição da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato & Cia. – Editores, “Vida Ociosa” provocou, desde então, e ainda vem provocando, as mais diversas manifestações da crítica e até algumas discussões de caráter conceitual. O sub-título “Romance da Vida Mineira”, suprimido nas edições posteriores, produziu debates sobre a exata classificação do livro nesse gênero. A dúvida a respeito, levantada por João Pinto da Silva, logo no ano seguinte, creio que pela primeira vez, ecoou longe e repercutiu em incontáveis apreciações. Em seu ensaio sobre a obra, depois recolhido ao volume “Fisionomias de Novos” (1922), assim escreveu o analista gaúcho: “Vida Ociosa”, - di-lo o autor, - na página de roso, é um romance da vida mineira. Rigorosamente, essa designação é, talvez, no caso, inadequada e, por isso, contestável. Não há propriamente romance onde falte um entrecho, ou, melhor, a intriga, o estudo de psicologia aplicada, a refletir-se e a desdobrar-se no conflito de caracteres e de interesses.”

Em artigos, cartas ou manifestações diretas, apreciaram o livro críticos e escritores das mais diversificadas tendências e formações, a exemplo de Adalgiso Pereira, Ricardo Gonçalves, Augusto de Lima, Moacir Deabreu, J. A. Nogueira, João Pinto da Silva, Tristão de Athayde, Arthur Neiva, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Silva Ramos, Raul Vergueiro, Antônio Cândido, Hilário Tácito, D. Antônio de Almeida Moras Júnior, Mário Matos, João Dornas Filho, Guilherme de Almeida, Benjamim de Garay, Breno Ferraz, Antônio Sales, B. Sanchez Sãez, Fernando Sales, Edgard Cavalheiro, Fernando Góes, Monteiro Lobato, Wilson Martins, Manuel Bandeira, Fausto Cunha, Menotti Del Picchia, Wellington Brandão, Ernani Silva Bruno, Emílio Moura, Carlos Drummond de Andrade e muitos outros, alguns estendendo a análise a outras obras do escritor mineiro. Desde 1977, com a publicação da biografia de minha autoria e de sucessivos ensaios, inúmeras outras manifestações surgiram na imprensa, em sua maioria registradas em meus trabalhos posteriores.

É oportuno observar que muitas apreciações sobre Godofredo Rangel parecem mirar-se exclusivamente em “Vida Ociosa”, refletindo uma visão incompleta e parcial de sua obra. Não é possível uma conclusão correta com base num só livro, mesmo que este seja, como no caso, uma obra-prima assim considerada pela opinião majoritária.

Em seu romance “Um Artista Aprendiz”, livro extremamente monótono, Autran Dourado fez com Rangel o que este muito fizera com os outros – colocou-o na pele do Prof. Sílvio Sousa, retratado com simpatia e respeito, mas ainda às voltas com as dificuldades financeiras que o assoberbaram pela vida afora.

Mesmo na aceitação pública o livro foi bem sucedido na época do lançamento, justificando inclusive a publicação posterior de duas novas edições, uma pela Companhia Editora Nacional e outra pelas Edições Melhoramentos. É uma obra de importância em nossas letras, composta por um homem de profunda consciência profissional e que foi, por um paradoxo do destino, prejudicado pela maior das amizades – a de Monteiro Lobato – ao lado de quem sempre caminhou.

Mas o escritor paulista, amante extremado da verdade, proclamou sempre o valor da obra rangelina, afirmando com todas as letras ser “Vida Ociosa” o “único livro nosso que, embora de gênero diverso, possa ser colocado numa estante entre “Brás Cubas” e “Dom Casmurro.”

Resta agora esperar que o leitor penetre essas páginas e confirme por si próprio o julgamento de Monteiro Lobato.

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(*) As expectativas se frustraram. A editora, inexperiente, não soube avaliar a importância da obra e publicou uma brochurinha chocha e sem atrativo. Ainda por cima, abriu-a com um prefácio oportunista que nenhuma relação tem com o livro. Não soube divulgar o lançamento e o resultado foi o fracasso total. Rangel continua tão esgotado e desconhecido como antes. Em compensação, meu livro “As Antecipações de Lobato”, no qual este trabalho foi publicado, mereceu o terceiro prêmio “Centenário de Lúcia-Miguel Pereira”, na categoria ensaio, da Academia Mineira de Letras. (Nota de 2004).




(23 de junho/2007)
CooJornal no 534


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC