24/02/2007
Ano 10 - Número 517


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

A GRANDE AVENTURA

 

Passei alguns dias mergulhado nos “Diários Índios”, de Darcy Ribeiro (Cia. das Letras – S. Paulo – 1996 – 600 págs.), livro que li com cuidado há uns dois anos e sobre o qual escrevi dois ensaios, ambos já publicados. Escrito em forma de diário, como longa carta enviada à esposa, Berta, que ela só leria depois de publicada, é recheado de fatos, mapas, desenhos e fotografias, tornando a leitura agradável, apesar do tamanho. É um dos livros menos conhecidos e comentados do autor de “O Povo Brasileiro.”

Nele o autor narra as duas expedições que realizou ao território dos índios urubus-kaapor, visitando suas aldeias, uma por uma, espalhadas no mais profundo da selva amazônica no Pará o no Maranhão. A primeira partiu de Vizeu, na foz do rio Gurupi, ou seja, do norte para o sul. A segunda teve trajeto oposto, partindo do rio Pindaré para o norte. Chegou a permanecer por dez meses na região, longe de tudo, isolado do mundo, dormindo em ranchos improvisados ou ao relento, comendo mal e sofrendo o assédio dos mosquitos e outros insetos. Venceu correntes de rios pouco conhecidos em batelões velhos e precários, cruzando corredeiras perigosas, tendo às vezes que andar dentro da água, mergulhado até a cintura, para empurrar o barco. Fez caminhadas que chegaram aos mil quilômetros, dentro da selva, cruzando picadas abertas a golpes de foice e machado, ou em caminhos abertos pelos índios, cruzando igarapés, furos e igapós desconhecidos. Muitas vezes molhado até a alma, sem enxergar um palmo de céu, encoberto pela mataria verdejante, percorreu regiões nunca pisadas por brancos, das quais inexistiam mapas e informações seguras.

Nunca se desgarrava da caderneta de campo, tudo anotando, mapeando e desenhando. Mais tarde passava para cadernões de capa dura, enquanto ainda fresco na memória, procurando manter a maior fidelidade. É admirável que tenha feito uma obra literária, escrevendo em condições tão precárias, em cima da perna ou de algum tronco caído (os índios não usavam mesas), na semi-obscuridade ou cercado de índios que não cessavam de falar e lhe tomavam a caneta das mãos porque também desejavam fazer seus rabiscos e desenhos. Mesmo assim, em alguns momentos chega a atingir o nível da boa prosa poética. Graças ao seu esforço e à sua coragem, deixou-nos um retrato sem retoque daquela inóspita região, seus habitantes e seu modo de vida.

Com 27 anos de idade, na época, Darcy Ribeiro estava no auge da forma física e do entusiasmo intelectual. Tudo o cientista social queria ver, observar, entender e registrar. Nada de informes requentados, de segunda mão; sua meta era examinar in loco. Exercitando atilado senso de observação, nada deixava escapar e tornou seu livro um manancial único e inesgotável sobre aquela região do país. Ao lado das observações de caráter científico, emergem do texto o sentimento humano, o amor ao país, a dedicação à ciência que abraçou e a preocupação com a sorte daquele povo abandonado, já então vítima de invasores e exploradores (os regatões). Viu os primeiros efeitos do contato dos civilizados com os indígenas e alertou para as conseqüências futuras, aquelas que nós todos hoje conhecemos.

Além de tudo, o livro relata uma aventura única e insuperável. Não vejo como um homem de nosso tempo possa realizar aventura igual ou parecida, dentro do território nacional, sem contar com recursos tecnológicos e dispondo de tão parcos recursos. Parece-me de todo impossível.




(24 de fevereiro/2007)
CooJornal no 517


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC