03/02/2007
Ano 10 - Número 514


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

CAPÍTULOS DE UM ROMANCE AMAZÔNICO
 

Graças à gentileza da amiga Adelaide Petters Lessa, professora, poeta e ensaísta paulistana, pude ler e avaliar o livro “Contos Amazônicos”, de Inglês de Souza (Martins Fontes – S. Paulo – 2004), precedido de excelente ensaio-apresentação de autoria de Sylvia Perlingeiro Paixão, também organizadora da obra, bibliografia e glossário. O volume reúne nove contos, longos em sua maioria, publicados pela primeira vez em 1893 e ambientados em plena selva amazônica, região de que o autor era originário e conhecia como poucos. Como escreve a apresentadora, “os contos são como capítulos seriados de um romance que situa e constrói a região amazônica aos olhos do leitor e em que o exótico é aos poucos transfigurado, transformando-se na coisa como ela é.” O ambiente, o clima, a linguagem, os usos e costumes regionais, os valores morais, a solidão, as distâncias e, como background, a imensidão de florestas e rios que caracteriza aquele mundo regido pela ditadura das águas, onde o silêncio palpita de vida, humana e animal, não faltando os entes imaginários que o povoam. Região onde a pequenez humana se acentua em todas as situações. Mundo nunca assaz conhecido e desvendado em que o contista mergulha por inteiro na tentativa de colocá-lo nas letras que sabe manejar com o raro talento de um de nossos grandes contistas do passado.

Nascido em Óbidos, Estado do Pará, Herculano Marcos Inglês de Souza (1853/1918) teve uma existência repleta das mais variadas experiências, notabilizando-se desde cedo como ficcionista invulgar. Estudou no Pará, no Maranhão e no Rio de Janeiro, bacharelando-se em Direito pelas “Arcadas”, em São Paulo (1876). Exerce a advocacia e o jornalismo na Paulicéia, período em que publica os romances “O Cacaulista” e “História de um pescador”, iniciando-se na ficção pela forma mais longa - a romanesca. Depois de ter sido governador de Sergipe e do Espírito Santo, fixou-se no Rio de Janeiro, onde foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro tesoureiro. Lecionando na área jurídica e advogando, foi banqueiro e deputado federal. Publica nesse período “O Coronel Sangrado” e “O Missionário”, ambos romances, considerando-se este último “um dos mais típicos do naturalismo brasileiro”, além de sua melhor obra ficcional. Em 1893 vêm a lume estes “Contos Amazônicos”, trabalhos jurídicos e escritos inéditos, revelando um incansável batalhador das letras. Seu regionalismo naturalista é saudado pela boa crítica da época, dele dizendo a referida Sylvia Perlingeiro Paixão, com justeza, que “revela um grande espírito de observação, amor à natureza e uma especial fidelidade às cenas regionais” (p. X). Faleceu em 6 de setembro de 1918, aos 65 anos, ingressando em longo período de esquecimento – o chamado “limbo literário” – até o aparecimento desta nova edição de seus contos, devolvendo-o às livrarias e às mãos dos leitores. Humberto de Campos, em crônica ambígua, misto de elogio e crítica, acaba por proclamar que “seria injustiça, no entanto, negar-lhe a vocação literária, o mérito do trabalho, embora irregular e dispersivo, o destaque, enfim, que lhe cabe entre os melhores escritores da geração” (1). Lúcia Miguel Pereira, em texto mais analítico, dedica-lhe palavras consagradoras, como, a meu ver, merece (2). Outros críticos de nomeada avaliaram sua obra, como Agripino Grieco, um dos mais rigorosos exegetas de nossas letras, Olívio Montenegro, grande intérprete de Lima Barreto (3), Josué Montello e José Veríssimo, para mencionar apenas alguns. Sobreleva em sua obra o romance “O Missionário”, o mais importante, onde o naturalismo brasileiro se revela em plenitude, tornando-o um dos mais típicos exemplos. Isso, porém, em nada diminui “Contos Amazônicos”, conjunto de histórias primorosas e que retratam a misteriosa região com incrível realismo, sem os exageros e fantasias que costumam reinar em tantas obras nela ambientadas.

Estes contos, todos eles, têm desfecho trágico, embora a tragédia esteja mais nos fatos que nas palavras. O contista não carrega nas tintas, como o pintor que lança mão de tons suaves para mostrar a crueza da cena. O efeito alcançado por essa técnica é eficaz e entrega ao leitor toda a realidade tal como de fato acontece. Não cai na tentação de “cantar as belezas naturais que eram motivo e tema literários, usadas de forma abusiva no sentido de criar uma paisagem exótica cheia de promessas quanto a um futuro idealizado” – como escreve a prefaciadora (p. XII). É, enfim, um estilo de construção de histórias muito pessoal e marcante, distintivo da pena do escritor do Pará.  

O primeiro conto, abrindo as portas para o universo amazônico, é “Voluntário.” Relata os padecimento do rapagão Pedro, nos seus dezenove anos, arrimo único da velha mãe Rosa, tapuia que já não podia cuidar da ínfima roça de subsistência. Pescador hábil, o rapaz conseguia os peixes que vendia no porto de Alenquer e assim remediava a situação. Mas vai que um dia, ainda que sendo arrimo de família, surge a notícia de que Pedro seria recrutado para combater nas hostes da Guerra do Paraguai. Urdia nos bastidores a eterna politicalha e a despeito do hábeas corpus impetrado pelo narrador-advogado, o rapaz foi retirado às escondidas da jurisdição do juiz e conduzido para longe, onde foi embarcado no vapor que o levou à Capital. Revelou-se a Justiça, como em tantas ocasiões, mera ficção. O conto me trouxe à recordação casos que ouvi nos Campos Gerais de minha terra a respeito do “reculutamento a laço de voluntários”, fatos que aterrorizavam os pobres moços de então. Também Monteiro Lobato, ao retratar o Jeca Tatu, anota o temor que ele votava ao “reculutamento.” O conto faz interessantes observações sobre a vida ribeirinha e o temperamento conformista dos sertanejos. 

Em “A Feiticeira”, logo a seguir, surge o caso do delegado Antônio de Sousa, que não acreditava nessas toleimas e resolveu tirar a limpo as histórias que corriam a respeito de temida feiticeira. Perguntando-lhe se tinha pacto com o diabo, “a tapuia não respondeu, mas pôs-se a olhar para ele com aqueles olhos sem luz, que intimidam aos mais corajosos pescadores da beira do rio” (p. 30). Apesar de sua valentia, o rapaz não se deu bem e teve que fugir, espavorido, bradando por socorro, mostrando que as crendices populares nem sempre são tão incríveis assim. Neste conto o autor aborda a vastíssima rede de histórias do gênero que circulam na região, transmitindo-se de boca em boca, estimuladas pela vastidão da selva e o domínio das águas, caminhos naturais que permitem a comunhão vagarosa entre as vilas, os povoados e as pessoas.

Segue-se o caso da belíssima Maria, a mais gentil rapariga de Vila Bela,  e seu terrível desengano amoroso. “Era uma donzela de dezenove anos, alta e robusta, de tez morena, de olhos negros, negros, meu Deus!, de cabelos azulados como a asa de anum!” (p. 41). Vila Bela, antes povoação do que vila, compunha-se de três ruas semidesertas que se estendiam sinuosas e tristes à beira do rio. Não obstante, lá se inoculou a política, infernizando viventes que dispunham do paraíso de paz e silêncio. “A maldita política dividiu a população, azedou os ânimos, avivou a intriga e tornou insuportável a vida nos lugarejos da beira rio” (p. 43). Lá, como cá, o partidarismo cego tudo envenenava, como, aliás, em lugares onde vivi, atestando, mais uma vez, que o Brasil é o mesmo, aqui ou além. Induzida pelas crendices, ministra ao amado uma meizinha que lhe despertaria o amor e, no entanto, provoca-lhe estertorosa morte: o venenoso taiá. A formosa e infeliz Mariquinha desapareceu da vila. “Hoje, dos seus infaustos amores, só resta como lembrança em Vila Bela o nome de Amor de Maria dado pelo povo ao terrível taiá que matou o filho do capitão Amâncio” (p. 57). Mais um exemplo de como nomes generalizados pela boca do povo encontram tantas vezes seus fundamentos em histórias ou lendas.

“Acauã”, por sua vez, retrata a desgraça provocada pela agourenta ave e seu lúgubre grito anunciador de trágicos malefícios. Malefícios que se manifestam nas terríveis convulsões sofridas pela infeliz Aninha que “se retorcia como se fora de borracha” (p 70). Cerrando os olhos, contorcendo-se em doloroso rictus, a moça exclamava: “Acauã! Acauã!” Por cima do telhado, uma voz respondeu à de Aninha: Acauã! Acauã! Um silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível desgraça. Era o Acauã!” (p. 71). A maldição da ave agourenta, assim batizada pela vox populi, se exercia mais uma vez de forma inexorável, justificando o temor dos ribeirinhos à sua presença e ao seu diabólico grito.

Em “O Donativo do Capitão Silvestre” retrata-se a reação nativa contra o mandonismo inglês na região diante da atitude prepotente e arrogante de Christie, “despertando o pundonor nacional” (p. 73). Intrincadas questões diplomáticas acirram o nativismo caboclo e os nacionais se preparam para a luta. “Vocês hão de ver que os ingleses não chegam por cá. Só os capoeiras de minha terra dão cabo deles” – gabava-se um morador (p. 79). Entre fortificações, preparativos, subvenções, contribuições e brios feridos, explode a surpreendente atitude do capitão Silvestre, com indignação concentrada: “Cem bacamartes de ouro...e quinhentos cartuchos embalados para guerrear esse governo que barateia os brios da nação!” (p. 88). Creio que é dos raros contos onde se vislumbra alguma dose de humor.

“O Gado do Valha-me Deus” ingressa no terreno surreal tão propício àqueles ínvios eivados de mistérios. Para além da grande serra do Valha-me Deus muito gado reiúno povoava imensos campos, indócil e insubmisso à domesticação, furtando-se à humana aproximação. Depois de marchas intermináveis, andanças estafantes, buscas e campeiragens sem fim, é, afinal, morta a vaca preta, mãe do rebanho. E o que se segue é o choro convulso de um bezerro que metia dó. “Aquilo estava bem claro que a vaca preta era a mãe do rebanho, e, como nós a tínhamos assassinado, havíamos de agüentar toda aquela choradeira” (p. 98). Rebanho de gado misterioso, desafiador e inacessível, provocando risos de pássaros pelo vexame dos vaqueiros, lá na língua deles. “Nada de vermos coisa que parecesse com boi nem vaca, e só campo e céu, céu e campo, e de vez em quando bandos e bandos de marrecas, colheireiras, nambus, mangaris, garças, tuiuiús, guarás, carões, gaivotas, maçaricos e arapapás que levantavam o vôo debaixo das patas dos cavalos, soltando gritos agudos, verdadeiras gargalhadas por se estarem rindo de nosso vexame lá na língua deles” (p. 100). Moídos, sedentos e famintos, retornam à fazenda, concluindo cabisbaixos e vencidos, que “nunca encontrei gado que me desse tanta canseira” – como desabafou um peão (p. 101). Mais um mistério dos tantos que rondam a selvática Amazônia, aliás, nem apenas composta de selva, mas também de campos e campinas, como advertia o conhecedor do assunto, Prof. Sílvio Meira.

O “Baile do Judeu”, expressa o sentimento anti-semita então dominante, não sufragado pelo contista, mas decorrente da onda nativista que varria o sertão amazônico. Nesse baile, o judeu “atreveu-se a convidar a gente da terra, a modo de escárnio pela verdadeira religião de Deus Crucificado” (p. 103). Imaginava-se que ninguém compareceria à festa do “homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Jesus Cristo” (idem), mas ao cair da noite a casa ribeirinha regurgitava. Lá estavam, “em plena judiaria”, as figuras gradas do lugar, e a orquestra em plena ação. Muito se dançou, comeu e bebeu, o contentamento era geral. “Nunca se vira baile igual!” – proclamavam. Pelas onze horas, adentra o salão um baixote desconhecido, de casacão preto e chapéu desabado, tirando Mariquinha para dançar. O homem, para geral surpresa, dançava sem parar, ensaiando passos e posições incríveis, deixando sem fôlego a companheira. Uma dança desenfreada, frenética, que a todos espantava, às vezes artística, lasciva ou engraçada. Seguiu-se uma valsa vertiginosa, verdadeiro turbilhão de passos cadenciados, mal se distinguindo os vultos que rodopiavam sem trégua, como se flutuassem no ar em êxtase amoroso. Foi então que o audaz dançarino derrubou o chapéu e se notou que tinha a cabeça furada. Concluiu-se que não fosse homem, mas um boto, um imenso boto, ou o demônio por ele, “que afetava, como por maior escárnio, uma vaga semelhança com o Lulu Valente” (p. 110). Ainda rodando no valsar aloprado, sai pela porta, rodopiando como redemoinho ao vento, e “chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de cima com a moça imprudente, e com ela se atufou nas águas. Desde essa vez ninguém mais quis voltar aos bailes do judeu” (idem). O contista, com extrema habilidade, ficcionalizou uma das tantas histórias que cercam o boto e suas ações, irresistível sedutor das donzelas cujos filhos não têm pais conhecidos. Belíssimo conto.

“A Quadrilha de Jacó Patacho”, um assassino “que a miúdo cometia casos estupendos (que) se contavam de um horror indizível: incêndios de casas, depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores” (p. 112). Vítimas preferenciais eram os portugueses, objeto maior do ódio nativista recalcado contra os que consideravam exploradores do povo humilde. No caso, a morada do bom português se transformou em escombros, assediada pelos urubus e com sinistro aspecto de carnificina recente. O chão, orlado de cadáveres insepultos, revelava a violência da agressão e do saque. As mulheres, levadas como troféus, se viram destinadas aos homens da quadrilha e uma delas, já idosa, lavadeira em Santarém, “contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência” (p. 127). Episódio de tempos brabos, violência e impiedade, atingindo tantas vezes os inocentes. Páginas duras que pontilham a dolorosa formação dos povos.

O derradeiro conto, mais tendente a uma novela, é “O Rebelde” (cerca de setenta páginas, divididas em tópicos) é expressivo retrato da presença temida da “cabanagem”, movimento rebelde que se infiltrou na Amazônia, provindo de Pernambuco, organizado em verdadeiros piquetes de revoltosos que, em certa fase, virtualmente dominaram a região. Paulo da Rocha, pernambucano precocemente envelhecido, mostrava-se amigo de todos, não obstante cultivasse ideais cabanos absorvidos em longo passado de lutas. A fértil imaginação amazonense “fizera dele um personagem revolucionário, misterioso, sinistro e perigoso, de cuja alma já estaria de posse o Inimigo, ainda em vida do corpo” (p. 130). Não obstante, após marchas e contra-marchas, ele se revela um defensor corajoso dos brasileiros e maçons perseguidos sem trégua pelos cabanos que então dominavam ambas as margens do Amazonas. Em ingentes esforços e hábil luta diplomática, às vezes desafia a própria morte na defesa do marinheiro, pai do narrador. Entre fugas pelos ínvios, camuflagens sem fim, tropeços e perigos embrenham-se pelo sertão em busca da salvação. Como resultado de tanta luta, acabou encarcerado e envelhecido antes do tempo. Depois de um ano de esforços inauditos, o narrador-personagem consegue livrá-lo da masmorra, provando que fôra decidido defensor dos moradores. O velho retomou as funções de sineiro da igrejinha, hospedado em casa do narrador, mas não viveu tantos anos, expirando nos seus braços. Contrariando seus arraigados ideais cabanos, lutou com bravura pela amizade dedicada aos outros, e por isso pagou caro. Personagem dividido entre o que julgava justo para os seus, explorados e excluídos, mas que ouviu a doce voz do coração.As difíceis encruzilhadas que a vida põe diante de tantos viventes.

São resumos toscos, mesmo para não prejudicar eventuais leitores. Falta-lhes a indescritível exuberância dos emaranhados tons de vedes, os estranhos sons que ousam violentar o silêncio, a movimentação dos cascos que singram as águas, a variegada vida de animais, peixes e vegetais que se cruzam e entrecruzam, o panorama, enfim, que o contista soube imprimir aos relatos. Falta-lhes o infindável rol de nomes nativos: plantas, animais, peixes, aves, répteis, insetos. Para nós. os de hoje, restaria a visão do alto, contemplando lá embaixo o inextrincável mundo verde onde mata e rio se confundem e interpenetram.

Perpassam todo o livro, ora mais próximos, ora mais remotos, os ecos da cabanagem. Pela fala de um personagem é possível avaliar o ódio alimentador desse movimento, retratado na “miséria originária das populações inferiores, na escravidão dos índios, na crueldade dos brancos, nos inqualificáveis abusos que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes...” (p. XVI). Como adverte a apresentadora, tantas vezes citada, o autor “privilegia mais as lutas que afligem o homem moralmente: a opressão do mais forte sobre o mais fraco...” (p. XIV). Bem analisadas as coisas, foram as mesmas causas do nosso “Contestado”; lá e cá, as eternas repetições. Não é por acaso que Paulo Pinheiro Machado, expert neste assunto, acentua que se tratava de uma sublevação dos pobres contra os ricos, “associada por amplas camadas da população pobre do país a uma defesa paternal dos pobres contra os poderosos” (4). Iniciando-se em Pernambuco e Alagoas, a Guerra dos Cabanos, foi um movimento social que reuniu agregados, libertos e pequenos sitiantes numa luta de guerrilhas que depois evoluiu para o Maranhão, o Pará e o Amazonas, agitando por cerca de quatro anos a vida nos sertões. (Existem certas diferenças entre cabanagem e cabanada, conforme as regiões conflagradas, mas foram fenômenos idênticos) (5).

Ainda no que respeita à fortuna crítica do contista, lembre-se que Manuel Bandeira o contempla ao tratar da ficção realista, incluindo-o entre os sertanistas, como Coelho Neto, Afrânio Peixoto, João Simões Lopes Neto, Waldomiro Silveira, Godofredo Rangel e Monteiro Lobato e tantos outros, autores de obras totalmente diferentes, incidindo, assim, num exagerado simplismo. Entre Rangel e Inglês, por exemplo, vai um mundo. Quanto a Lobato, ele comete pequena injustiça ao afirmar que o contista jamais superou “Urupês”, seu livro de estréia, sendo hoje pacífico que sua obra-prima é “Cidades Mortas” (6).  

Embora algo fracionária, creio que a melhor abordagem, dentre as modernas, é a de Wilson Martins. “Inglês de Souza – escreve o crítico, – escritor do Norte, contribuía para a ficção realista com “O Cacaulista”...Ora, é precisamente o coeficiente social, no sentido próprio do adjetivo, que Inglês de Souza introduz no romance brasileiro. Também em 1876, com “O Cacaulista.” (...) Se ele não é o primeiro “realista” ou “naturalista” de nossa literatura, é certo que, com “O Cacaulista”, o romance brasileiro deu o salto qualitativo do herói individual e do “caso” psicológico para o personagem social e a caracterização de uma sociedade; além disso, a “tese” transpõe os limites abstratos dos princípios para o exemplo tirado da vida (...) “O Cacaulista” já é o primeiro volume do “ciclo do cacau”, já se passa “nas terras do sem fim” por excelência da planície amazônica; e isso é muito (...) “O Cacaulista” já é o romance econômico, social e político da conquista sobre a terra do cacau...”(7). Diante disso, resta evidente que Inglês de Souza foi um inovador e um pioneiro, glórias que pode, com justiça, ostentar.

Não quero encerrar sem breves observações sobre a linguagem regional. Embora dono e senhor dela, o contista usa com moderação as expressões locais, evitando transformar o texto em inextrincável cipoal. Algumas palavras, dentre tantas, guardam semelhança com as de meus Campos Gerais; outras diferem por completo. Assim, v. g., carapetão tem idêntico sentido (mentira), cavaco (aqui é conversa, lá é irritação, aborrecimento), embira (tem o mesmo sentido de cipó), esgadelhado (descabelado, tanto lá como cá), cuiambuca (aqui é cumbuca ou cambuca), mezinha ou meizinha, moquém, sezão, terçado, tucum e brasido têm o mesmo significado. Já aningal, caba, chimpar, madeiro (no sentido de chifre), maqueira, pacoval (no sentido de bananal), sairé, tananá, vagado (no sentido de desmaio) e ventrecha (posta de peixe) são desconhecidas aqui no Sul. Mais uma mostra da incrível riqueza de nossa língua e da imensa criatividade com que o povo vai elaborando novos vocábulos no correr dos tempos.

Registro, por fim, o lançamento de nova edição do romance “Belém do Grão Pará”, de Dalcídio Jurandir, o quarto do chamado “ciclo extremo norte”, e que andava ausente das livrarias. Não me furto a uma rápida comparação com Inglês de Souza: ambos têm visível preocupação social, embora neste último ela não assuma características ideológicas. Concluo, lembrando recente ensaio de autoria do jornalista Washington Novaes denominado “A Amazônia de espasmo em espasmo”, um chamado à consciência dos brasileiros sobre o que lá acontece – e que vi em pessoa nas várias viagens pela região, – onde se sucedem estragos e destruição sem limites e sem que as respostas venham na mesma intensidade. O temor pelo futuro da região aflige a todos os brasileiros de verdade. (8).

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Notas:

(1):- Inglês de Souza, in “Carvalhos e Roseiras”, Obras Completas de Humberto de Campos, Rio/S.Paulo/P.Alegre, W. M. Jackson Inc., 1941, pp. 184/190

2) – “Prosa de Ficção”, Lúcia Miguel Pereira, Rio, José Olympio, 1950, p. 77.

(3) – Veja-se o excelente prefácio ao livro “Coisas do Reino de Jambon”, Obras Completas de Lima Barreto, S. Paulo, Brasiliense, 4a. ed., 1961, pp. 9/19.

(4) - “Lideranças do Contestado”, Paulo Pinheiro Machado, Campinas, Editora da UNICAMP, 2004, p. 213.

(5) – “Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, 1971, 12a. ed., Vol. III.

(6) – “Noções de História das Literaturas”, Manuel Bandeira, S. Paulo. Cia. Editora Nacional, 1954, Vol. II, pp. 114/116.     

(7) – “História da Inteligência Brasileira”, Wilson Martins, S.Paulo,     Cultrix/EDUSP, 1977, Vol. III, pp. 504/510        .

(8) – “O Liberal”, Belém, 10/04/2005, p. 4; “O Estado de S. Paulo”, S. Paulo, 04/04/2005, p. 2.




(03 de fevereiro/2007)
CooJornal no 514


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC