09/09/2006
Ano 10 - Número 493


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

O INTERNACIONALISTA GILBERTO AMADO

 

 

Não deixa de ser curioso que um patriota como Gilberto Amado (1887/1969) tenha se especializado em Direito Internacional Público, disciplina em que se tornou autoridade. Uso a palavra patriota, tal como ele preferia, porque considerava “o nacionalismo a forma zangada de patriotismo, a modalidade crispada do amor à pátria.” Semântica à parte, poucos brasileiros amaram mais este país.

Em 1987, por ocasião do centenário de nascimento do escritor, dois eventos de magnitude aconteceram para festejar a data, um no Brasil e outro em Genebra, embora pouco ou nada divulgados. Em Brasília, no Palácio Itamaraty, realizou-se sessão solene, no dia 21 de julho, presidida pelo então presidente da República, José Sarney, ocasião em que se manifestaram o próprio presidente, Roberto de Oliveira Campos, José Sette Câmara e Rodrigo Amado, discorrendo todos a respeito do homenageado e sua obra. Outra sessão solene, esta de repercussão mundial, teve lugar no “Palais des Nations”, na Comissão de Direito Internacional da ONU, em Genebra, no dia 16 de junho. Nessa ocasião, proferiu importante palestra o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, Consultor Jurídico do Itamaraty, originalmente em inglês. Todos os trabalhos foram mais tarde reunidos em pequeno volume pela José Olympio Editora (Rio – 1987 – 86 págs.). Acrescentou-se a ele a célebre “Oração aos jovens diplomatas”, proferida por Gilberto em 1955. Como tantas outras publicações, o livro mereceu completo silêncio.

Gilberto Amado ainda não encontrou o biógrafo que mereceria. Não teve a boa sorte de um Monteiro Lobato que foi retratado de corpo inteiro pelo incansável Edgard Cavalheiro, autor de uma das melhores biografias de nossas letras. Todos os livros sobre o sergipano – e podem ser contados nos dedos das mãos – são incompletos e fracionários, silenciando quase sempre a respeito da fase internacional de sua vida, que vai do ingresso no Itamaraty até o falecimento, e sobre a qual pouco se sabe. Ainda está por ser realizado um levantamento exaustivo de sua atuação nesse campo (1934 a 1969).

Na palestra acima referida, no entanto, o Prof. Cançado Trindade, deu início ao desvendamento desse período tão rico da vida de Gilberto, embora não surgisse quem desse continuidade ao estudo, o que é uma pena. Em sua palestra, sob o título de “A contribuição de Gilberto Amado aos trabalhos da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas”, sempre fundamentada em sólidas fontes, traça um panorama geral da atuação do nosso representante e suas numerosas intervenções, fixando seus pontos de vista a respeito dos mais palpitantes temas internacionais da época. Lembra ele, com muita propriedade, que os assuntos internacionalistas não eram alheios a Gilberto desde seus tempos de parlamentar, ainda na República Velha. Espírito universalista e curioso de todos os saberes, ele já se dedicava, desde então, às leituras de Direito Internacional.“Deputado pelo Estado de Sergipe; na Câmara Federal, integrou, como presidente, a Comissão de Diplomacia e Tratados, e como relator, a Comissão de Finanças, onde emitiu pareceres sobre assuntos tais como as posições do Brasil com relação ao Pan-Americanismo e à Liga das Nações” – escreveu (p. 63). (Creio que aí há um pequeno equívoco: todas as manifestações de Gilberto que encontrei, falando como presidente da referida Comissão, foram feitos no Senado e não na Câmara). E de fato, rápido passeio sobre os anais de sua atuação no Parlamento revela a preocupação com temas como o Brasil na guerra, as relações Brasil-Argentina, o projeto “Estados Unidos da Europa”, a imigração portuguesa, o orçamento do Ministério das Relações Exteriores, enfatizando sua fé na Liga das Nações, o armistício que pôs fim à guerra na Europa, entre outros, sobre os quais se manifestou em discursos. Parecia intuir, com anos de antecedência, que estava vocacionado a ser um expoente de nossa diplomacia.

Prosseguindo em sua exposição, Cançado Trindade mostra que o embaixador brasileiro era adepto de um desenvolvimento progressivo e da codificação do Direito Internacional Público, assumindo sempre uma postura pragmática e que levasse em conta, tanto quanto possível, a prática dos Estados. Pensava e agia como um pragmático, não como um teórico, ainda que conhecendo muito bem a teoria. Um realista, buscando sempre o factível. “Não podia associar-se à escola de internacionalistas idealistas que se julgava competente para ditar aos Estados quais eram seus interesses vitais” – resumiu o autor (p. 67).

Dentre os múltiplos assuntos discutidos, Gilberto Amado interveio nos debates relacionados ao direito do mar, ao mar territorial, ao conceito de agressão, à arbitragem, às organizações internacionais, ao reconhecimento de novos Estados, à inclusão do indivíduo como sujeito de Direito Internacional, relações diplomáticas e consulares, jurisdição penal internacional, nacionalidade e apatrídia, responsabilidades dos Estados, rios internacionais, cláusula de nação-mais-favorecida, ao jus cogens e outros tantos. Quanto ao mar territorial, opunha-se à sua extensão arbitrária pelos Estados, além de doze milhas, em face da prevalência das práticas internacionais; quanto ao indivíduo como sujeito, revelava-se aberto à sua aceitação, idéia embrionária na época; quanto ao status das organizações internacionais para celebrar acordos, era receptivo à idéia. Defendia a aceitação do “princípio da predominância do universal sobre o particular para reconhecer o jus cogens como uma realidade que está diante de todos os Estados no direito internacional contemporâneo” (p. 76). Havia, afirmava, “progresso na institucionalização do Direito Internacional, o qual, entretanto, continuava sem meios de coerção paralelos aos do direito interno” (idem).

Como afirma o autor, “o levantamento acima revela que Gilberto Amado estava, de fato, engajado na consideração e no tratamento de praticamente todos os grandes temas do direito internacional de sua época” (p. 79). Com efeito, seu nome se liga de forma inarredável à história da própria Comissão de Direito Internacional da ONU. Como seu membro, foi eleito por unanimidade relator, em 1949, na primeira sessão, e depois reeleito sem interrupção até sua morte, em 1969. Acredito que seja um caso único na vida daquela instituição. Como tributo à sua memória, foram instituídas, com aplausos de todas as delegações, as Gilberto Amado Memorial Lectures, ocasião em que se proferiam palestras anuais a seu respeito e de sua obra. Duas importantes fontes para o conhecimento desse período da vida de Gilberto Amado são citadas pelo palestrante: “Repertório da Prática Brasileira de Direito Internacional Público” e “Anuário da Comissão de Direito Internacional (1949/1968)”, ambas da maior credibilidade, além de outras, nacionais e estrangeiras.

Em sua palestra, o embaixador Sette Câmara informou que guardava, com o maior cuidado, centenas de cartas recebidas de Gilberto Amado e que, pelo que me consta, nunca foram dadas a público. São, sem dúvida, documentos da maior importância e que deveriam ser publicados. Recorda, ainda, muitas passagens curiosas de sua convivência com o sergipano.

Vamos esperar que surja o quanto antes o grande biógrafo de Gilberto Amado. A passagem inclemente do tempo tornará cada vez mais difícil a indispensável tarefa.



 
(09 de setembro/2006)
CooJornal no 493


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC